terça-feira, janeiro 23, 2007

ESTUDO DE UM TRECHO DA OBRA: “SIMPÓSIO” DE PLATÃO

Trecho estudado na obra: “Discurso de Sócrates”

Introdução
Trata-se do relato de Sócrates sobre um discurso ouvido de uma mulher de Mantinéia, Diotima1, que era grande conhecedora do assunto que estava sendo exposto (Eros). Indubitavelmente, é o discurso de maior importância do Simpósio, já que oferece toda uma série de elementos de notável interesse para compreensão do pensamento platônico no seu conjunto. O discurso oferece uma visão atípica dos discursos anteriores, pois já no discurso de Erixímaco, “Eros” fora apresentado como forças opostas, isto é, conciliando os contrários 2, o qual, porém era declarado incompleto, e por isso devendo ser superado.
No discurso de Sócrates, o conceito de Eros como mediação e síntese de forças opostas torna-se central e com detalhes que estavam ausentes no discurso de Erixímaco.

Síntese do Discurso
O início do discurso é constituído de questionamentos acerca do belo e feio, sábio e ignorante, evidenciando um meio termo entre esses opostos.
Diotima demonstra que a opinião (doxa) não pode ser sabedoria já que não é fundamentada, como também, não pode ser ignorância, então, conclui que é um meio termo entre sabedoria e ignorância. Desse modo, ela alerta Sócrates de que não é conveniente concluir que o que não é belo é feio, nem que o que não é bom é mau, logo, ela determina o meio termo, isto é, “Eros” que permanece sempre intermediando entre os extremos.

Ilustração:



Contudo, Sócrates ainda resiste alegando que todos reconhecem que Eros é um deus poderoso, de modo que, Diotima demonstra que Eros não poderia ser um deus poderoso, pois este não seria plenamente feliz, nem belo, afinal, havia ausência dessas coisas nele.
Daí ela conclui que Eros é um meio termo entre mortal e imortal, isto é, um “Daímon”.3 Vejamos como a descrição é apresentada na obra:

203a“O Daímon interpreta e leva aos homens o que é próprio dos seres-humanos e traz aos homens o que é próprio dos deuses. As orações e os sacrifícios de uns, os mandamentos de outros e as recompensas pelos sacrifícios! Situado entre uns e outros, preenche este espaço intermédio, de maneira a manter unidas estas duas partes de um todo. É dele que procede a arte divinatória, bem como, as artes sacerdotais relativas aos sacrifícios, às iniciações, aos encantamentos e a toda magia em geral. Os deuses não se aproximam dos homens, e é por intermédio deste Daímon que os deuses estabelecem comunicação com os homens, seja durante a vigília, seja durante o sono. O homem que conhece estas coisas é de caráter daímoniaco, inspirado, enquanto o homem que tem engenho para fazer outra coisa, arte ou ofício, não passa de um artífice. Os Daímons são em grande número, de muitas espécies e, um deles, é Eros.”

Após a descrição Diotima é questionada sobre quais seriam os progenitores de Eros, então ela explica que no nascimento de Afrodite houve uma espécie de Simpósio entre os deuses a título de comemoração, entre eles estava Poros, filho de Métis; no decorrer da festividade chega Pénia, que tinha o hábito de mendigar os sobejos da mesa, depois de algum tempo Poros fica embriagado e adormece no jardim de Zeus, nesse momento Pénia possuída pela indigência teve a idéia de conceber um filho deste, de modo que, deitou-se ao lado e concebeu Eros.
Então, conforme Diotima Eros passou a ser escudeiro e companheiro de Afrodite, isto devido o fato de ter sido concebido no mesmo dia do nascimento da deusa, “e também porque Eros por natureza é amante do belo e Afrodite é bela”.
Eros herdou características similares à de Poros e Pénia 4, pois é pobre, não é belo, é rude, anda descalço, dorme no chão, vive desagasalhado junto às portas e nas ruas. Com efeito, imita a indigência de sua mãe, por outro lado, vive a procura do belo e do bom, é bravo, audaz, ardente, filósofo, bom caçador, e gasta muito tempo filosofando; não é mortal nem imortal, e esta sempre no meio termo entre a sabedoria e a ignorância.
É importante enfatizar que nenhum deus filosofa, pois todos os deuses já detêm sabedoria, de modo que, já são sábios.
Sobre os ignorantes também não são filósofos, como também, não desejam tornar-se sábios, porque a ignorância caracteriza-se justamente por se julgar bela e sábia, o que verdadeiramente não ocorre.
Eros caracteriza-se sempre entre o ponto intermediário (meio termo), entre o sábio e o ignorante, como também, é o sujeito amante não o objeto amado, isto porque “o amável é realmente belo, delicado, perfeito e feliz (deuses); mas o que ama tem a essência (Eros, filosofo)”.
Em seguida, Diotima explica a utilidade do Eros, isto é, enquanto amante do belo; com efeito, demonstra que amar o belo, equivale a amar o Bem, pois amar o Bem é ser feliz. Daí surge a seguinte questão: todos devem amar o Bem já que buscam pela felicidade? A resposta não é tão simples, o que indubitavelmente incita admiração de Sócrates.
Ocorre que segundo Diotima existem outras espécies de amor, pois o amor pelo Bem seria um gênero, de modo que, teríamos outras espécies designadas para o amor; é nesse momento que Diotima faz alusão ao termo Poíesis 5, o que designa a passagem do não ser ao ser, trata-se de uma criação.
O que ela quer significar, é que há uma grande diversidade de designações que constitui o grande industrioso Eros:

205d“Há muitas maneiras de nos entregarmos ao amor, a dos que procuram ganhar dinheiro, dos que se dedicam à ginástica e a filosofia, ninguém diz que sejam amantes ou amados. Contudo, há uma espécie particular de amor cujos adeptos e seguidores recebem o nome de gênero, por inteiro: amor, amar, amantes...”

Diotima também esclarece que o homem ama aquilo que lhe parece bom. Resulta daí que o homem busca possuir o bem, de modo que, deve saber praticar o amor pelo bem.
A prática do amor pelo Bem consiste na criação da beleza segundo o corpo e segundo o espírito. Apesar de Sócrates não compreender no primeiro momento, Diotima explica melhor sua afirmação dizendo que “todos os homens são fecundáveis segundo o corpo e segundo o espírito”. Pois alega que existe um momento na vida em que o homem deseja gerar, não no feio, mas sim no belo, assim, a união do homem e da mulher é um ato de geração. Conforme Diotima trata-se de uma obra divina, onde o ser mortal participa da imortalidade pela fecundação; ainda argumenta enfatizando que a harmonia deste ato é constituída pelo desejo do belo, pois não há harmonia no feio, e quanto maior for a beleza, maior será o desejo de fecundar.
O amor é o desejo de geração no belo, com isso caracteriza-se a importância da procriação, que é justamente a possibilidade do mortal ser imortal, eterno “pois o amor é o desejo da eterna posse do Bem”. Com efeito, Eros é o desejo da imortalidade.
Diotima ainda vai a busca da causa desse desejo incessante de procriar no Belo, o que inclusive é característica de todos os animais. Sendo assim, ela determina que a causa principal é sempre a busca da imortalidade, do eterno, e isso ocorre através da procriação, onde se deixa sempre uma criatura jovem no lugar da velha, pois a velhice constitui o cessar do ser, e a juventude a plenitude do ser. Até o conhecimento, com o passar do tempo necessita de reflexão, de modo que, possa reter o que foge. “O esquecimento é a fuga do conhecimento, e a reflexão a recordação que substitui o que se esquece de modo que este parece sempre o mesmo”.




Portanto, o ser mortal nunca se mantém igual a si mesmo, como acontece com a natureza divina, mas deixa apenas outra criatura que envelhece e morre em seu lugar, é por esse processo que tudo o que é mortal participa do que é imortal. Pode-se inferir então que “todo ser ame seu descendente, pois é em vista da imortalidade que cada um revela este zelo e este amor”.
De acordo com Diotima essa busca pela imortalidade exige do homem muitos sacrifícios, pois no caso dos que são fecundos segundo o corpo “voltam-se de preferência para mulheres, e essa é a maneira de amar, já que julgam que criar filhos assegura a imortalidade, a sobrevivência da memória, plena felicidade, num futuro que lhes parece eterno”.
No caso daqueles que são fecundos segundo o espírito, e este é mais fecundo do que o corpo prevalece à criação no domínio da alma, isto é, a sabedoria e outras virtudes as quais abrange todos de poder inventivo.
Anteriormente foi dito que “existe um desejo incessante de procriar no belo”, mas também ocorre de existir desejo de procriar no feio, desde que este seja uma alma bela, generosa, e bem dotada, que caracteriza uma beleza sedutora; nesse tipo de relação concebe-se imensa instrução, afinal, com tamanha beleza de alma constitui-se grande poder de criação.
Nos fecundos segundo o espírito pode-se dizer que há mais solidez do que entre os fecundos segundo corpo, já que dos filhos espirituais obtêm-se maiores consagrações.
O caminho do Eros leva à superior beleza das almas, e ensina a amar mais a esta do que a dos corpos.
Conforme Diotima, o caminho inicia-se com a beleza do corpo, daí prossegue de maneira justa, atingindo a beleza das atividades humanas e dos modos de viver e das leis, e da beleza do conhecimento, por último o belo em si, por si, consigo mesmo como forma única sempre existente.

210 e – “Pois quem tiver chegado até este ponto no caminho de Eros, depois de ter contemplado as coisas belas numa gradação regular; quando atingir a meta suprema, contemplará a beleza de uma maravilhosa natureza, a própria beleza...” “... beleza eterna que não conhece nem nascimento nem a morte, que não esta sujeita à evolução de crescimento e diminuição, que não é bela por um lado e feia por outro, ou bela em um tempo feio no outro, bela neste lugar feio naquele”;


Portanto, Diotima conclui seu discurso com a seguinte afirmação: “a vida vale a pena ser vivida desde que se contemple a beleza essencial”, desta forma, o homem não se liga a fantasmas, e sim a virtudes verdadeiras, e este é amado pelos deuses, e se torna imortal.

Conclusão
O discurso de Sócrates constitui de modo preciso uma enorme distinção entre os outros discursos no Simpósio, pois este ensinamento recebido por Sócrates da sacerdotisa e vidente Diotima caracteriza um movimento do Eros àquilo que se pode reconhecer como o estado mais elevado do ser, que é a contemplação do belo em si.
O vértice teórico que Platão reproduz neste discurso é extraordinariamente singular aos demais, de modo que, determina a verdadeira essência da obra, porém é fundamental enfatizar que os outros discursos são elementos para o entendimento do conjunto na sua totalidade, não devendo ser negligenciados.

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Estudado por: Adriano de Araujo

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Bibliografia

Platão. O Simpósio ou do amor, Trad. Pinharanda Gomes, EDITORA LISBOA GUIMARÃES EDITORA, LDA.

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NOTAS


[1] Alguns autores pretendem que Diotima seja um personagem inventado por Platão, o que conflita com o hábito do filosofo de estabelecer seus diálogos com personagens reais. Diotima de Mantinéia é personagem real e, segundo Proclo, uma pitoniza pitágorica. Não obstante, Platão com seu pendor etimológico, extrai de ambos os nomes uma sugestão para profetícia (mantinikês) e para favor celestes (diotimas), predicados da Sofia. (coleção filosofia & ensaio – O Simpósio).

[2] Traços extraídos do pensamento de Heráclito (filosofo Pré-socrático).

[3] Depois de Homero: deuses menores, almas dos mortos, espíritos inferiores, entidades tutelares e protetoras dos vivos.

[4] Note-se que são características muito próximas às de Sócrates.

[5] Ação de fabricar, fabricação, Confecção de um objeto artesanal, composição de uma obra poética; Aristóteles explica o termo como uma prática na qual o agente e o resultado da ação estão separados ou de natureza diferente. A poiésis liga-se a arte de fabricação, construção, composição e a idéia de téckine.

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