quarta-feira, janeiro 24, 2007

ESTUDO DA CONCEPÇÃO DE MERLEAU-PONTY SOBRE “A VISÃO SER O ENCONTRO DE TODOS OS ASPECTOS DO SER”, NO TEXTO: "O OLHO E O ESPÍRITO".

No “O olho e o espírito” Merleau-Ponty concebe a pintura como aquela reflexão desprovida de idéia: mais próxima por isso do sentido espontâneo do “ser no mundo”, é a própria “apresentação sem conceito universal”. Afinal, na obra do pintor é que se encontra a coisa visível a ver-se, ou melhor, a visão a fazer-se visível: é a reflexão.
Assim, “a visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do ser”; significa que na concepção fenomenológica de Merleau-Ponty [1], o ato ou efeito de ver se faz pelo corpo num entrelaçamento de sentidos, percepções e consciência. Ora, o olhar proporciona a verdadeira dimensão do real (daquele ser mudo), pois o olho é o corpo e este o é na medida em que o corpo é o próprio ponto de vista sobre o mundo.
Em outras palavras, a “encruzilhada de todos os aspectos do ser” é o encontro não só do ser em si mesmo, mas deste com o outro e com o mundo. Assim, todas as vivências são acrescidas do outro e do mundo; daí a visão possibilitar aquele abrir-se para o mundo, para o “encontro de todos os aspectos do ser”
É necessário ressaltar que em tal concepção, “a visão não é um certo modo do pensamento ou da presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo da qual eu me fecho sobre mim”; por tal motivo que é reflexão desprovida de idéia. Logo, deve-se conceber o mundo como aquilo que se vê, mas não como aquilo que se pensa ou analisa.
Desse modo, se faz necessário explicitar a noção de fenômeno [2], sem recorrer às analises das ciências, afinal, até mesmo o universo cientifico é baseado no mundo vivido; portanto, o mundo é anterior a qualquer conhecimento, é por isso que “emprestando seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura”.
No pintor “o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo e que se restitui ao visível pelos traços da mão”; eis o porque da visão promover o verdadeiro encontro de todos os aspectos do ser. A expressão máxima da pintura constitui-se pela visão, “a pintura desperta e eleva à sua última potência um delírio que é a própria visão, já que ver é ter à distância, e que a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que de alguma maneira devem fazer-se visíveis para estar nela”.
Merleau-Ponty vê no gesto do pintor a expressão da nossa relação com o ser, a manifestação dessa “gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo”; assim, é que “... a visão do pintor é um nascimento contínuo”, e por tudo aquilo que tal visão vivifica e torna possível alcançar, que se reconhece sua potência para o real, para o mundo. Ora, não há dúvidas que se torna manifesta aquela explicitação metafísica no caso da pintura, não no sentido moderno do termo, mas naquela acepção original propriamente ôntica resgatada pela fenomenologia [3].
É assim que a visão é o próprio retorno ao mundo originário, ao mundo antes de ter sido parcelado, tematizado ou determinado pelas ciências; é o encontro de todos os aspectos do ser; pois ela implica que o coloquemos entre parênteses, que suspendamos (épochê) a nossa crença que foi construída nele [4].
Com efeito, para entendermos a relação que nós temos com o mundo, é indispensável suspendermos este próprio movimento de relação, porque o nosso olhar contaminado pelo senso comum ou pelos saberes tematizados e determinados apresenta-nos as coisas de uma forma tão evidente que muitas vezes não conseguimos nos desprender desses olhares “corrompidos” e parece que a observação do mundo nunca é pura. Assim, é necessário “acordar” para as coisas, e isso só será possível se nos abstivermos delas por um instante, se as suspendermos. Ora, nas próprias palavras de Merleau-Ponty: “... o mundo que é segundo a minha perspectiva para ser independente de mim, que é para mim a fim de ser sem mim, a fim de ser mundo”.
É assim que com Merleau-Ponty o homem só é o que é porque está no mundo, pois é no mundo que ele se reconhece, que se abre na visão do mundo sem ser o que é no mundo; assim, o mundo é propriamente a morada, a fonte da percepção; o que difere, em muito, do mundo como concebiam os dogmáticos [5].
Com efeito, por tudo que foi apresentado até aqui, ou seja, a partir do estudo do texto (“O olho e o espírito”), é que se torna explícito aquela “centelha do senciente-sensível” manifestada como mundo mudo na visão, ou seja, na manifestação do “porque da visão ser o encontro de todos os aspectos do ser”.
Estudado por: Adriano de Araujo
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NOTAS

[1] A noção de fenomenologia é um tema predileto de Merleau-Ponty, ao qual ele dedica um espaço importante nas suas meditações, como se pode verificar na obra “Fenomenologia da Percepção”.
[2] O termo “fenômeno”, enquanto objeto de estudo da fenomenologia (ciência dos fenômenos) deve ser compreendido como a coisa mesma, daí a necessidade de Merleau-Ponty buscar “regressar aos fenômenos”, isto é, ao modo de aparecer vivido antes de ser tematizado ou determinado pelo pensamento.
[3] É neste sentido que Edmund Husserl nos falava da necessidade de uma “fenomenologia genética” que nos descrevesse a realidade no seu emergir imediato, no seu aparecer como movimento, sem nenhuma influência cientista, psicologista ou historiadora. Não se trata de procurar este olhar fenomenológico na história ou em textos outrora legados pelos diversos discípulos de Husserl, mas sim procurar em nós mesmos a unidade fenomenológica, o verdadeiro sentido do olhar do fenoménologo.
[4] Vale notar que conforme o filosofo tomista Jacques Maritain a “épochê” fenomenológica, que põe entre parênteses, “suspende” todo o registro da existência extramental e separa, assim, o objeto (a essência-fenômeno) da coisa, é impossível, pois implica contradição como realmente vivida e experimentada. Afinal, envolveria a negação daquilo que se pretende ainda nada saber. Trata-se de uma falsa realização ou em outras palavras a expressão da pseudometafísica (ou pseudo-existência) contemporânea.
[5] É fundamental lembrar que Merleau-Ponty não confunde o mundo com uma realidade objectiva em si, fazendo dele um objeto de ciência.

ESTUDO DOS MOMENTOS E RUPTURAS EPISTÊMICAS DA FILOSOFIA (RENASCENTISTA, CLÁSSICA E MODERNA) EM M. FOUCAULT.

Introdução
Procuraremos a partir dos estudos arqueológicos de Foucault[1], ressaltar três momentos epistêmicos na história da filosofia ocidental; momentos que somados, isto é, vistos em conjunto, possibilitam a observação de certas rupturas entre um e outro (certos saltos epistêmicos ou descontinuidades históricas); ou seja, observaremos certos recortes em que ocorrem alterações fundamentais dentro do pensamento filosófico na cultura Européia.
Os três momentos que denotam tais rupturas são: “episteme renascentista” (do séc. XV ao XVI), “episteme clássica” (do séc. XVII ao XVIII) e “episteme moderna” (do séc. XIX ao XX).
De acordo com Foucault, a “episteme” (ou ciência) designa um conjunto de conhecimentos de uma dada época, ou seja, aquilo que uma dada época representa em termos de conhecimentos realizados.

Algumas considerações sobre o momento da episteme renascentista[2].
A episteme renascentista considera as similitudes [3] como sendo fundamentais no seu desenvolvimento; Foucault identifica quatro similitudes: conveniência, emulação, analogia e simpatia. Vejamos:

. Por conveniência entende-se a “relação articulada das coisas”, relação entre seres reais no espaço, lugar e proximidades. Ora, é importante enfatizar que de acordo com Foucault, no renascimento o homem identificava as coisas por meio de seus sinais, com efeito, podia relaciona-las nas suas similitudes. Assim, tudo era repleto de sinais e podia ser interpretado; por exemplo: na relação do mar e areia, pedra e vento há comunicação espacial, pois nesta relação era possível ler suas articulações manifestas em sinais.

. Por emulação entende-se a conveniência abstraída do espaço, lugar e proximidades; significa que não há ligação no espaço físico, nem na proximidade física. Afinal, ocorre a similitude pelo distanciamento das coisas; como o reflexo no espelho. Não se concebe a coisa em si, mas o seu reflexo (aquilo que a coisa faz conhecer). Desta forma verifica-se que o rosto corresponde ao êmulo do céu, a distância entre os astros dos céus e o rosto do homem representa um reflexo furtivo ao longe.

. Por analogia entende-se aquela proximidade do distanciamento e o distanciamento das proximidades; pressupõe a conveniência e a emulação. Compreende as relações com as coisas, como dos animais e as plantas em que o animal é uma planta de cabeça para baixo e a planta é um animal de pé e que cresce para cima. Constitui-se pela relação entre coisas e não das próprias coisas em si mesmas.

. Por simpatia entende-se pela transformação promovida na atração das coisas (girassol atraído pra o sol); onde ocorre o movimento no sentido daquilo que atrai. Assim, a simpatia é um “princípio de mobilidade”, sendo que é pela atração que existe transformação da coisa naquilo que atrai, tornando as coisas semelhantes. Entretanto, verificamos no “princípio de mobilidade” a transformação contrária, que é a antipatia; pois nela o movimento é de repulsa, há um afastamento recíproco das coisas, como o fogo que é quente e seco e a água que é fria e úmida.

Conforme Foucault, as coisas invisíveis são conhecidas pelas visíveis na “episteme renascentista”; o que significa, que em tal episteme acredita-se que Deus é manifesto nas coisas por meio de sinais; ou melhor, que Deus imprime nas coisas os sinais necessários para que o homem conheça o invisível pelo visível. Desse modo, o conhecimento humano ocorreria na esfera da “semiologia” (localização dos sinais determinados por Deus) e da hermenêutica (busca das similitudes invisíveis).
A episteme renascentista é caracterizada pela magia somada à herança cultural (caráter divinativo), como também, pela erudição (saber racional); pois envolve a decifração, isto é, o conhecimento constituído pelo processo de observação, imaginação, indução e adivinhação.
. Nela interpretar é conhecer, e conhecer é saber [4], o que não deixa de ser uma condição de poder [5]; afinal, Deus teria deixado sinais em todas as coisas, e aqueles que decifrassem tais sinais é que realmente tinham posse do saber.

Algumas considerações sobre o momento da episteme clássica.
A episteme dos clássicos se contrapõe, com a hermenêutica renascentista, pela necessidade de uma analítica. Trata-se de uma diferença fundamental que serve de alicerce para um novo momento epistêmico, e seu nome é máthêsis: a ciência universal da medida e da ordem, isto possibilita estabelecer entre as coisas uma sucessão bem ordenada, ou seja, uma análise.
Em tal episteme as palavras se separam das coisas, como afirma Foucault: “... a partir do séc. XVII se perguntará como é que um signo pode estar ligado às coisas. A tal pergunta a idade clássica responderá pela análise da representação” [6].
Portanto, não há dúvidas, pois devemos ressaltar que será uma época em que as palavras e as coisas se distanciam. Em que estas, as coisas, não mais falam, não mais guardam uma verdade secular. O mundo deixa de ser texto indefinidamente interpretável. Com efeito, algumas diferenças serão eminentes, a começar pelas próprias palavras que serão analisadas sintaticamente (construção gramatical); caberá à história natural o estudo dos seres vivos (incluindo o homem); e também, a análise das riquezas que tem como objeto de estudo as necessidades e os desejos.
Desse modo, a matemática passará a servir de meio fundamental, pois o mundo será analisado pelos olhos da matemática; logo, haverá mensuração e observação plena das representações do mundo, o que resultará numa visão absolutamente mecanicista.
A construção signal será dada pelo sujeito e apenas por ele, seja convencional como as palavras, símbolos etc; ou natural como o reflexo no espelho. Portanto, toda a realidade será uma construção bem articulada do sujeito.
É importante considerar que diferente da episteme renascentista que considerava significado das marcas (domínio formal), o significante (conteúdo) e as similitudes, a episteme clássica considera apenas o significante e o significado; mas, de modo adverso, pois o signo esta no próprio pensamento, ele é a ligação de uma coisa e a idéia de outra. O conteúdo é a representação no significante, daí constitui-se aquela representação da representação; afinal, não há nenhuma concepção da coisa real, é o próprio pensamento a condição determinante. O signo é a representação da representatividade representável, é a ligação plena do significante com significado.
Portanto, não é Deus que imprime nas coisas os sinais necessários para que o homem conheça o invisível pelo visível; afinal, na episteme clássica pode-se dizer que o invisível é no visível, porque é a representação não representada; significa que o sinal, ou melhor, o signal esta no sujeito e não nas coisas.
Por tudo isso, ocorre também o nascimento da literatura; pois tudo é representação e linguagem, então a imaginação ganha asas, possibilitando a criação desrealizada (exemplo: Dom Quixote de Cervantes).

Algumas considerações sobre o momento da episteme moderna
As diferenças da episteme clássica são expressivas diante da episteme moderna; afinal, enquanto a última é marcada pelo surgimento da biologia, da economia e da filologia (que estudam a vida, o trabalho e a linguagem); a primeira, como já foi apresentado, é voltada para a história natural, a análise das riquezas e a construção gramatical.
Ora, vimos que a primeira foi marcada pela primazia da representação; já no caso da segunda, haverá o desaparecimento da representação [7]; pois conforme ressalta Foucault, a episteme moderna vai "... deixando de privilegiar a estrutura visível dos seres, o conhecimento torna-se empírico; não é mais a análise de uma representação, não tem mais idéias como objeto: torna-se sintético; seu objeto é uma coisa concreta, não mais ideal, mas real, tendo uma existência independente do próprio conhecimento”.
Portanto, não convém mais encontrar respostas nas representações, mas no próprio homem, este que passa a ser o objeto de estudo. Entretanto, é na analítica da finitude que se da uma condição real para que o sujeito volte-se para si descobrindo seu objeto de investigação, ou seja, o próprio sujeito se torna fonte reveladora de si mesmo.
Na finitude de seu ser o homem reconhecerá suas possibilidades reais de conhecimento, pois estará envolto com sua vida, trabalho e linguagem, isto é, de determinações extrínsecas de sua finitude; de modo que, pelas mesmas determinações reconhecerá sua soberania (sua condição de dimensionamento real).
Tornando-se o centro reflexivo da modernidade o homem repete-se a si mesmo continuamente; afinal, eis o modo da episteme moderna. Modo que explícita as positividades empíricas.
Foucault deixa evidente em sua obra (“As palavras e as coisas”) que a episteme moderna privilegia não mais a natureza, mas o homem em sua verdadeira condição.
Estudado por: Adriano de Araujo
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BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.
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NOTAS

[1] A partir de algumas anotações em sala e breve exame da obra “As palavras e as Coisas” – (uma arqueologia das ciências humanas) de M, Foucault.
[2] É importante ressaltar que tais considerações foram abstraídas em sala de aula, ou seja, a partir das anotações, apreciações e observações do mestre; como também, da pesquisa na própria obra.
[3] Termo que deve ser entendido como “pintura ou retrato” mental.
[4] O “saber”, conforme Foucault, representaria a ciência, a filosofia, a arte, a literatura... tudo que designa a manifestação humana relacionada à um estado de magia e senso comum.
[5] Vale lembrar que para Foucault o homem resulta de suas condições (ou formações) históricas, significa que o “poder” é uma condição relacionada com a política e a subjetividade manifesta em tal ou tal momento.
[6]Extraído de: M, Foucault, “As palavras e as coisas”, ed. Martins Fontes, 1966 – pg. 67.
[7] Consideramos que Foucault demonstra neste último momento epistêmico uma expressão significativa de desenvolvimento humano; afinal, as possibilidades epistêmicas são muito bem definidas.

ESTUDO SOBRE "OS INTELECTUAIS E O PODER” (CONVERSA ENTRE M. FOUCAULT E G. DELEUZE).


Foucault inicia o dialogo citando o que um “maoísta” 1 havia dito: “Eu compreendo que Sartre esta conosco, porque e em que sentido ele faz política; você, eu compreendo um pouco: você sempre colocou o problema da reclusão. Mas Deleuze eu realmente não compreendo”.
Assim, Deleuze procura ressaltar a concepção “teoria-prática”, pois alerta que a teoria é determinante na prática, como a prática é determinante na teoria; considera que no caso da prática há um “conjunto de revezamentos de uma teoria a outra” e no caso da teoria “um revezamento de uma prática a outra”. Usa como exemplo, os estudos de no meio de reclusão nos asilos psiquiátricos, onde Foucault apresenta a necessidade de dar voz aos reclusos tornando determinante a prática na teoria. Com efeito, considera um absurdo afirmar, como faz o maoísta, que Foucault teria “passado à prática aplicando suas teorias”.
Deleuze, ainda considera que no caso de tais estudos, Foucault, havia aplicado “um sistema de revezamentos em um conjunto, em uma multiplicidade de componentes ao mesmo tempo teóricos e práticos”. Portanto, concluí que o teórico, isto é, o intelectual, deixou de “ser um sujeito, uma consciência representativa”; afinal, assim como no caso dos “reclusos”, também os representados ganharam voz na própria representação.
Foucault, então, demonstra a existência de dois tipos de intelectual, o “maldito” e o “socialista”; entende que as massas, de fato, não necessitam dos intelectuais para saber, porém, o “sistema de poder” determina tal necessidade.
Os intelectuais são parte do sistema de poder, daí se tornam “consciências representativas” pelo próprio sistema; Foucault enfatiza que o intelectual é ao mesmo tempo “objeto e instrumento” do sistema de poder, seja na ordem do “saber”, da “verdade”, do “discurso” e da “consciência”. Portanto, Foucault considera que a teoria não é determinante na prática, mas é a própria prática.
Deleuze concorda com Foucault, acrescenta que a “teoria é como uma caixa de ferramentas”, sempre válida conforme o momento e a necessidade. A teoria não totaliza, mas multiplica-se diante do que esta por vir. E qualquer tipo de representação isolada ou reforma; isto é, o “falar pelos outros” não permitindo que falem, é indigno.
Então, Foucault faz alusão à condição dos prisioneiros, concluindo que o falar, a manifestação destes expressa mais do que uma delinqüência, e sim, uma “teoria da prisão”, “penalidade” e “justiça”; permitindo o interesse do não-prisioneiro em querer ouvir tais manifestações; o que certamente causa surpresa. Ele alega que nas prisões o sistema de poder se torna evidente, pois “não se mascara cinicamente, se mostra como tirania levada aos mais íntimos detalhes, é puro...” chegando a tornar-se infantil.
Deleuze responde alegando que não são “apenas os prisioneiros que são tratados como crianças, mas as crianças como prisioneiros”; considera que tal infantilização sofrida pelas crianças, não é próprio delas, e que o mesmo que ocorre nas prisões, ocorre nas escolas e fábricas. Conclui citando o próprio Foucault, de “que não existe justiça popular contra a justiça; isso se passa em outro nível”.
Foucault acrescenta que a justiça é uma forma de poder do sistema; pois, exemplifica com a Revolução Francesa, onde os modelos dos tribunais impunham uma ideologia de justiça burguesa.

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Estudado por: Adriano de Araujo

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Bibliografia
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal Editora. 2005.
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NOTA
1 O maoísta segue o maoísmo (Desenvolvimento teórico e prático do marxismo-leninismo (q. v.), realizado por Mao Tsé-Tung (1893-1976), estadista chinês, que prega a tomada do poder pelo proletariado e o desencadeamento da revolução cultural proletária durante a construção do socialismo, a fim de eliminar a ideologia burguesa).

ESTUDO DE ALGUNS LIVROS DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES

Livros estudados são: A e a.


Introdução (Livro A)

Concepção das causas dos filósofos anteriores em Aristóteles.
Ao tratar das causas (aítia) primeiras Aristóteles começa um exame histórico-crítico do pensamento dos filósofos anteriores, isto é, de Tales a Platão.
O objetivo principal é demonstrar que cada um dos seus antecessores não descobriu as causas e princípios com clareza e rigor, e enfatizar que sua “Tabua das Causas” a partir desse exame torna-se mais exata e completa.1
Conforme Aristóteles os primeiros a filosofar sobre as causas pensaram que o princípio (Arkhé) de todas as coisas era material, ou seja, aquilo de que todos os seres são constituídos, trata-se de um principio sempre idêntico, mesmo sob mudanças, seria como uma única realidade da qual derivam todas as coisas.
Aristóteles também enfatiza que esses filósofos não tinham opiniões unânimes acerca de qual seria a causa material, de modo que, inicia seu exame por Tales de Mileto.
O filosofo Tales acreditava que o principio de todas as coisas era a água, segundo Aristóteles sua convicção era baseada em algumas evidencias naturais.2
Aristóteles lembra que os antigos tiveram uma concepção semelhante à de Tales, pois afirmavam que a origem de todas as coisas era o “Oceano” e “Tetis”, ou seja, os autores da realidade natural; Decerto, a alusão é muito apropriada, afinal, demonstra que o mais antigo é “respeitável e digno”, portanto, facilmente concebido.3
Também são citados os filósofos Anaxímenes de Mileto e Diógenes, que sustentavam que o princípio era o ar (pneûma), como também, Hipaso de Metaponto e Heráclito de Efeso que tinham como princípio o fogo, e em seguida Empédocles de Agrigento cujo além de reunir e sustentar água, ar, fogo acrescenta o elemento terra (gê), constituindo os quatro princípios imutáveis, todos sujeitos ao devir, pelo aumento ou diminuição de quantidade; Teve também Anaxágoras de Clazômenas, filosofo que afirmava que os princípios eram infinidade das homeomerias.4 Evidentemente, tomando os princípios citados acima poder-se-ia sustentar a Causa material.
Porém para Aristóteles a Causa Material ainda não era suficiente, afinal, era necessário manter uma investigação acerca dos princípios, pois a pergunta que não queria calar era: “Qual a causa da causa material?...” Decerto, o substrato não poderia provocar a mudança de si mesmo!... Sendo assim, Aristóteles exemplifica tomando a madeira e o bronze, e afirma que “a madeira não faz a cama, nem o bronze a estátua”, logo, deve ser outra a causa de sua mudança (kínesis); Conclui-se que seria necessário encontrar outro princípio, isto é, uma outra causa.
É interessante observar que Aristóteles surpreende-se com o fato de nenhum dos filósofos anteriores não questionarem a possibilidade de algo além do substrato (ousía) como causa de todas as coisas, e ainda cessarem nesta dificuldade, porém, não esquece de mencionar que mesmo os que adotavam vários princípios (os pluralistas) como água, ar, fogo e terra, na realidade não tiveram tanto êxito já que apenas esses elementos são “insuficientes para produzir a natureza dos seres”.5
Aristóteles também cita Hesíodo que tinha como princípio dos seres o “amor” e o “desejo”, e o relaciona com Parmênides de Eléia que se vale do mesmo princípio ao reconstruir a origem do Universo.6 Em seguida retorna a Empédocles que introduziu a amizade e a discórdia como causas dos movimentos, afinal, na natureza existem coisas contrárias entre si, como o bem e o mal, sendo a amizade causa do bem, e a discórdia causa do mal.
Em suma, são duas as causas encontradas por esses filósofos Causa material e Causa do movimento, porém, de modo muito “confuso e obscuro”.
Aristóteles deixa explícito que tanto Empédocles como Anaxágoras, não se servem das causas adequadamente, chamando-os até de incoerentes.
Depois são mencionados Leucipo de Mileto e o seu seguidor Demócrito de Abdera (os atomistas) que afirmavam “que a diferença dos elementos são as causas de todas as outras”, ou seja, “o ser difere pela proporção, pelo contato e pela direção, sendo que a proporção é a forma, o contato a ordem e a direção a posição”, o exemplo empregado é: N é forma, NA de AN a ordem, Z e H diferem por posição:


Contudo, Aristóteles considera que foi negligenciada a origem e como ocorre o movimento.
Passa-se então ao exame dos Pitagóricos, como também, os Eleatas; Os Pitagóricos foram totalmente adeptos as investigações matemáticas, com efeito, acreditavam que os princípios das coisas eram os mesmos princípios da matemática, Logo, por ser o número o principio matemático, deveriam ser também os números os princípios das coisas, ou seja, mais do que qualquer outro principio.7
Por terem como principio os números, consideravam que os elementos constitutivos destes eram também constitutivos das coisas, isto é, o par e o impar sendo o primeiro ilimitado e o segundo limitado; Aristóteles enfatiza que são dez os princípios elaborados pelos pitagóricos, princípios distintos em série de contrários.8 Para eles o Um representava tanto o par como o impar, e dele derivava todo o Universo.
É citado também Alcméon de Crotona, que sustentava pensamento semelhante aos dos pitagóricos, porém obscuro e desordenado.
Conclui-se sobre os pitagóricos que no caso dos contrários houve analise insuficiente, e que seria impossível chegar às causas como era desejado por Aristóteles, pois os elementos apresentados estavam em função da matéria.
Sobre os Eleatas, Aristóteles afirma que o exame desses filósofos fugiria um pouco do que se propõe, mas, pelo fato dos naturalistas “ao explicar a geração do Universo, atribuírem ao Um o movimento; os Eleatas afirmariam que o Um é imóvel”, portanto, o exame passa a ser pertinente ao que se propõe.
Aristóteles demonstra que tanto Parmênides de Eléia, Xenófanes e Melisso sustentavam pensamentos diversos sobre o Um, sendo que para o primeiro era a Forma, já o segundo não oferecia esclarecimentos, a não ser em comum com Parmênides (Seu discípulo) que o Um era Deus, e o terceiro dizia que o Um era o ilimitado. Porém, para Aristóteles desses três filósofos apenas Parmênides foi considerado em seu exame, “pois esse parecia raciocinar com mais perspicácia”.
De acordo com Aristóteles, Parmênides afirmava que o Um era conforme a razão e o múltiplo conforme os sentidos, com isso, ele reconhecia duas causas e dois princípios: o quente (o ser) e o frio (o não-ser).
Por último Aristóteles examina a doutrina de Platão, no primeiro momento é predominante a semelhança com os Pitagóricos, mas não são desconsideradas as características próprias deste, que certamente “são estranhas à filosofia dos Itálicos”.
Aristóteles ressalta a amizade de Platão com Crátilo (seguidor das doutrinas heraclitianas), significa que, a doutrina heraclitana também influenciou o pensamento de Platão; Portanto, resignou-se em suas primeiras investigações a influenciação da idéia de que todas as coisas materiais estão sujeitas a um devir constante, pode-se afirmar que era concebido por ele que “todas as coisas sensíveis estão em contínuo fluxo e das quais não se pode fazer ”.
Houve também a influência de Sócrates, cujas questões éticas seriam mais relevantes do que as da natureza, e onde a busca por definições Universais seria mais importante, o que indubitavelmente faria com que Platão considerasse que os Universais só poderiam existir fora da realidade sensível, afinal, não poderia haver definição Universal naquilo que sofria uma contínua mudança; Com efeito, Platão passou a sustentar outras realidades, as idéias (eidos) 9, “afirmando que os sensíveis existem ao lado delas e delas recebem seus nomes”.
Então havendo essa pluralidade das coisas sensíveis que teriam o mesmo nome das Idéias (formas), haveria uma “participação” (methéxis) nas formas ou como diziam os pitagóricos “imitação”, afinal, Platão apenas mudou o nome; Porém, segundo Aristóteles tanto uns como outro não significaram “participação” e “imitação” das formas.
Desse modo, já que as “Formas” são as causas de outras coisas, “Platão considerou os elementos constitutivos das formas como os elementos de todos os seres, sendo o elemento material da forma o grande e o pequeno, e como Causa formal o Um”, Aristóteles acrescenta que tanto as formas de Platão, quanto os números dos Pitagóricos derivassem por participação do grande e do pequeno no Um.
Importante observar que segundo Aristóteles, “Platão situava os números fora dos sensíveis, enquanto os pitagóricos sustentavam que os números são as próprias coisas”.
Em suma, o que é não é como matéria, mas é como forma, e o que não é como forma, é como matéria, ressaltando que o que é como forma participa da matéria.
Aristóteles conclui desse exame, portanto, que quatro nem mais nem menos, são as causas, e que os princípios se devem indagar nesses quatro modos ou em alguns deles e de modo algum fora deles; Vejamos um Diagrama representando relação das doutrinas anteriores com as quatro causas:


Tendo descrito todos os filósofos anteriores Aristóteles parte para reafirmação de sua própria teoria, é de onde é possível encontrar longa crítica a cada um desses sistemas doutrinários.10

Crítica aos Filósofos anteriores sobre as causas – (Livro A)
Aristóteles inicia atribuindo o erro àqueles que afirmam que o todo é uma unidade, como também, aos que “postulam como matéria uma realidade única, corpórea e dotada de grandeza” (monistas). Afinal, são apenas considerados os elementos da realidade corpórea e não da incorpórea, e mesmo tentando indicar as causas de todas as coisas, eles fornecem apenas a geração e a corrupção na natureza esquecendo-se do movimento; Também não colocam a substância e a essência como causa de alguma coisa, não explicam como o fogo, água, ar e a terra se geram uns dos outros.
Afinal, deveriam expor o elemento mais originário de todos os outros, pois apenas àqueles que atribuíram a geração ao elemento fogo estiveram mais próximos e em conformidade no raciocinar.11
Aristóteles enfatiza que todos os filósofos anteriores falaram de elementos originários com partículas menores, como o ar, água e fogo, porém, nenhum falou da terra como falaram maioria dos homens, e um desses homens foi Hesíodo que afirmava que “dos quatro corpos, a terra foi gerada primeiro”; Contudo, conforme Aristóteles não acertaria aquele que afirmasse outro elemento além do fogo.
Em seguida Aristóteles examina àqueles que admitiram maior números de elementos (pluralidade), então inicia com Empédocles que afirma os quatro elementos como matéria.
Empédocles acreditava que os quatro elementos geram-se uns dos outros, de modo que, um corpo não permaneceria sempre o mesmo; Ocorre que não determinou se devemos considerar uma ou duas as causas de movimento, e por último não acentuou um processo de alteração, afinal, não “poderia haver a passagem do quente ao úmido ou do úmido ao quente sem que existisse alguma coisa que recebesse esses contrários”, ou seja, uma natureza única que se tornasse qualquer outra.
O filosofo Anaxágoras considerava dois elementos (Nous ou Inteligência e a mistura da homeomerias)12. Aristóteles considera um absurdo a afirmação de que todas as coisas estavam misturadas na origem (com exceção do Nous), pois elas deveriam preexistir não misturadas, “também porque nem todas as coisas, por sua natureza, podem misturar-se com outras”.
Em suma, seria impossível qualificar, quantificar, determinar uma essência daquilo que estivesse misturado desde a origem, Aristóteles reforça dizendo que não poderia determinar nenhuma forma particular, pois isso seria impossível.
Para Anaxágoras apenas o Um seria puro, pois representaria o próprio Nous, ou seja, seria o princípio de tudo. Anaxágoras não foi exato e muito menos claro em seu pensamento, porém existe certa semelhança com o pensamento dos filósofos posteriores (Platônicos).
Em seguida Aristóteles inicia sua crítica aos pitagóricos, e afirma que esses se valiam de “princípios e elementos mais remotos do que os princípios físicos dos naturalistas”, afinal, os pitagóricos não extraiam as coisas dos sensíveis; Não obstante, eram discutidas algumas coisas relativas a natureza como a gênese do céu, isto é, suas partes, movimentos, com efeito, “esgotam suas causas e seus princípios na explicação dessas coisas”.
No entanto, não explicam como se produz o movimento, já que afirmam apenas o limitado e o ilimitado, o par e o ímpar, como também não explicam como ocorre a geração e corrupção dos corpos no céu.
Contudo, “quando afirmam que em determinado lugar no Universo encontra-se a opinião e o momento oportuno e que um pouco acima como um pouco abaixo se encontra a injustiça e a separação ou a mistura, e para provar afirmam que cada uma dessas coisas é um número” Aristóteles questiona: “este número que esta no Universo coincide com cada uma daquelas coisas, ou é um número diferente dele?”.
Platão também vai considerar o número dos pitagóricos, porém, sustentará que as causas sejam números inteligíveis e que os outros sejam números sensíveis.
Assim passa-se a Platão e os Platônicos, afinal, será considerada como princípios às formas; Houve o propósito de entender os seres sensíveis, com efeito, “introduziram entidades supra-sensíveis em número igual aos sensíveis”.
As formas são em número iguais ou pouco inferiores aos objetos, sendo que para cada coisa individual existe uma entidade com o mesmo nome, e isso valeria para todas as coisas.
Segundo Aristóteles a existência das Idéias (formas) como afirma Platão não procede com uma conclusão absolutamente necessária, ou seja, Platão duplica as coisas desnecessariamente e isso passa a ser insustentável.
Então Aristóteles argumenta que se há idéias de cada coisa, haverá idéia de relação entre coisas, e assim infinitamente.


Relação da Filosofia e a Verdade na Metafísica – (Livro a)
Conforme Aristóteles “é impossível um homem apreender a verdade, como também, impossível não apreendê-la de modo nenhum”, ele enfatiza que através das contribuições individuais pode-se adquiri bom resultado, isto é, acerca da descoberta de uma verdade. Admite que devemos considerar aqueles de opiniões comuns, pois esses também deram uma contribuição à verdade, de modo que, nos auxiliam em nossas especulações.13 Afinal, através da verdade “alguns afirmaram certas doutrinas e outros a causa do surgimento delas”.
A busca da verdade deve ser considerada por todos os filósofos, afinal, todas as verdades são causas, direta ou indiretamente. Sendo assim, a filosofia é denominada por Aristóteles como ciência da verdade, isto é, “a ciência teorética”, cujo fim (telos) é a própria verdade:


Aristóteles afirma também que o fim da prática é a ação, de modo que, aqueles que visam apenas a ação não tendem a um “conhecimento do que é eterno, mas só ao que é relativo a um determinado momento e a uma determinada circunstância”.
O que ele quer dizer é que não há possibilidade de conhecer a verdade sem conhecer as causas das coisas. Qualquer coisa que evidencie sua própria natureza é causa, de modo que, essa natureza será atribuída a outras. 14
Conclui-se que na Metafísica a filosofia é a ciência da verdade, porque diferentemente do que ocorre com outras investigações, o saber filosófico é sempre um saber teorético, que tem como objeto o alcance da verdade.
O filosofo sempre mantém seu espírito na atividade incessante de buscar as causas primeiras, ou seja, buscar aquilo que constitui a causa do “ser verdadeiro das coisas que dele derivam, de modo que, esse deve ser mais verdadeiro do que todos os outros”. Portanto, a causa dos seres eternos são sempre as mais verdadeiras que todas as outras, de modo que, não existem causas posteriores ao Ser.É importante afirmar que o processo causal é finito, afinal, onde há intermediários há começo e fim, e a busca do começo (causas primeiras) é justamente a tarefa teorética.

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Estudado por: Adriano de Araujo

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Bibliografia.

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Editora Loyola. (Tradução de REALE, Giovanni).

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NOTAS:

1] 983 b – 5 “Para presente investigação certamente será vantajoso referir-se a eles (filósofos anteriores). Com efeito, ou encontraremos outro gênero de causa ou ganharemos convicção mais sólida nas causas das quais agora falamos”.
[2] 983 b – 25 O alimento de todas as coisas era úmido, e da constatação de que até o calor se gera do úmido e vive no úmido”. “... e também do fato de que a semente de todas as coisas tem uma natureza úmida”.
[3] 983b – 30 “De fato afirmaram Oceano e Tetis como autores da geração das coisas, e disseram que aquilo sobre o que juram os deuses é água, chamada por eles de Estige”.
4 984 a – 15De fato, ele diz que todas as homeomerias (coisas feitas de partes semelhantes entre si) se geram e se corrompem apenas na medida em que se reúnem e se dissociam tal como ocorre com a água e com o fogo, e que de outro modo não se geram nem se corrompem, mas permanecem eternas”.
[5] Devemos ressaltar que nem as homeomerias de Anaxágoras, como também, os elementos de Empédocles são suficientes, já que parecem que se geram, quando se reúnem muitos iguais, ou se corrompem, mas parece que se corrompem, quando se desagregam.
[6] 984 b – 25 Parmênides diz: ”Primeiro entre todos os Deuses produziu o amor” e Hesíodo que diz: “Antes de tudo existiu o caos, depois foi a terra do amplo ventre e o amor que resplandece entre todos os imortais”.
[7] 985 b – 30 “...consideravam que determinada propriedade dos números era a Justiça, outra a alma e o intelecto, outra ainda o momento e o ponto oportuno, e assim para todas as coisas” “e além disso por verem que os acordes musicais consistiam em números e finalmente por verem que em toda a realidade pareciam serem feitas às imagens dos números...”
[8] 986 a – 25 “Limite – ilimite, impar –par, um – múltiplo, direito – esquerdo, macho – fêmea, repouso – movimento, reto – curvo, luz- trevas, bom – mau, quadrado – retângulo”.
[9] A tradução exata do termo seria forma, o que para Platão seria algo que constitui o objeto específico do pensamento, a saber, a que o pensamento se remete de maneira pura, aquilo sem o que o pensamento não seria pensamento: em suma, a idéia platônica não é absolutamente um puro ente de razão. É um ser, antes, é o ser que é absolutamente, o verdadeiro ser.- Tirado de: “Para uma nova Interpretação de Platão” – Giovanni Reale – (Capitulo décimo).
[10] No texto é ocupado um amplo espaço de 988b – 21 a 993 a – 10 onde se pode encontrar argumentos em favor da bem fundamentada esquemática das quatro causas 28b, anteriormente explorada pela física.
[11] 989 a “Com efeito, a de determinado ponto de vista, parece ser o elemento mais originário do que todos os outros, o primeiro a partir do qual se geram todos os outros, por um processo de união; mas esse elemento deveria ser composto de partículas menores e mais sutis (fogo)”.
[12] Ver nota anterior (4).
[13] 993 b – 15Se Timóteo não tivesse existido, não teríamos grande número de melodias; mas se Frini não tivesse existido, tampouco teria existido Timóteo”.
[14] 993 b – 25 “...o fogo é quente em grau máximo, porque ele é causa do calor de outras coisas”.

terça-feira, janeiro 23, 2007

ESTUDO DE UM TRECHO DA OBRA: “SIMPÓSIO” DE PLATÃO

Trecho estudado na obra: “Discurso de Sócrates”

Introdução
Trata-se do relato de Sócrates sobre um discurso ouvido de uma mulher de Mantinéia, Diotima1, que era grande conhecedora do assunto que estava sendo exposto (Eros). Indubitavelmente, é o discurso de maior importância do Simpósio, já que oferece toda uma série de elementos de notável interesse para compreensão do pensamento platônico no seu conjunto. O discurso oferece uma visão atípica dos discursos anteriores, pois já no discurso de Erixímaco, “Eros” fora apresentado como forças opostas, isto é, conciliando os contrários 2, o qual, porém era declarado incompleto, e por isso devendo ser superado.
No discurso de Sócrates, o conceito de Eros como mediação e síntese de forças opostas torna-se central e com detalhes que estavam ausentes no discurso de Erixímaco.

Síntese do Discurso
O início do discurso é constituído de questionamentos acerca do belo e feio, sábio e ignorante, evidenciando um meio termo entre esses opostos.
Diotima demonstra que a opinião (doxa) não pode ser sabedoria já que não é fundamentada, como também, não pode ser ignorância, então, conclui que é um meio termo entre sabedoria e ignorância. Desse modo, ela alerta Sócrates de que não é conveniente concluir que o que não é belo é feio, nem que o que não é bom é mau, logo, ela determina o meio termo, isto é, “Eros” que permanece sempre intermediando entre os extremos.

Ilustração:



Contudo, Sócrates ainda resiste alegando que todos reconhecem que Eros é um deus poderoso, de modo que, Diotima demonstra que Eros não poderia ser um deus poderoso, pois este não seria plenamente feliz, nem belo, afinal, havia ausência dessas coisas nele.
Daí ela conclui que Eros é um meio termo entre mortal e imortal, isto é, um “Daímon”.3 Vejamos como a descrição é apresentada na obra:

203a“O Daímon interpreta e leva aos homens o que é próprio dos seres-humanos e traz aos homens o que é próprio dos deuses. As orações e os sacrifícios de uns, os mandamentos de outros e as recompensas pelos sacrifícios! Situado entre uns e outros, preenche este espaço intermédio, de maneira a manter unidas estas duas partes de um todo. É dele que procede a arte divinatória, bem como, as artes sacerdotais relativas aos sacrifícios, às iniciações, aos encantamentos e a toda magia em geral. Os deuses não se aproximam dos homens, e é por intermédio deste Daímon que os deuses estabelecem comunicação com os homens, seja durante a vigília, seja durante o sono. O homem que conhece estas coisas é de caráter daímoniaco, inspirado, enquanto o homem que tem engenho para fazer outra coisa, arte ou ofício, não passa de um artífice. Os Daímons são em grande número, de muitas espécies e, um deles, é Eros.”

Após a descrição Diotima é questionada sobre quais seriam os progenitores de Eros, então ela explica que no nascimento de Afrodite houve uma espécie de Simpósio entre os deuses a título de comemoração, entre eles estava Poros, filho de Métis; no decorrer da festividade chega Pénia, que tinha o hábito de mendigar os sobejos da mesa, depois de algum tempo Poros fica embriagado e adormece no jardim de Zeus, nesse momento Pénia possuída pela indigência teve a idéia de conceber um filho deste, de modo que, deitou-se ao lado e concebeu Eros.
Então, conforme Diotima Eros passou a ser escudeiro e companheiro de Afrodite, isto devido o fato de ter sido concebido no mesmo dia do nascimento da deusa, “e também porque Eros por natureza é amante do belo e Afrodite é bela”.
Eros herdou características similares à de Poros e Pénia 4, pois é pobre, não é belo, é rude, anda descalço, dorme no chão, vive desagasalhado junto às portas e nas ruas. Com efeito, imita a indigência de sua mãe, por outro lado, vive a procura do belo e do bom, é bravo, audaz, ardente, filósofo, bom caçador, e gasta muito tempo filosofando; não é mortal nem imortal, e esta sempre no meio termo entre a sabedoria e a ignorância.
É importante enfatizar que nenhum deus filosofa, pois todos os deuses já detêm sabedoria, de modo que, já são sábios.
Sobre os ignorantes também não são filósofos, como também, não desejam tornar-se sábios, porque a ignorância caracteriza-se justamente por se julgar bela e sábia, o que verdadeiramente não ocorre.
Eros caracteriza-se sempre entre o ponto intermediário (meio termo), entre o sábio e o ignorante, como também, é o sujeito amante não o objeto amado, isto porque “o amável é realmente belo, delicado, perfeito e feliz (deuses); mas o que ama tem a essência (Eros, filosofo)”.
Em seguida, Diotima explica a utilidade do Eros, isto é, enquanto amante do belo; com efeito, demonstra que amar o belo, equivale a amar o Bem, pois amar o Bem é ser feliz. Daí surge a seguinte questão: todos devem amar o Bem já que buscam pela felicidade? A resposta não é tão simples, o que indubitavelmente incita admiração de Sócrates.
Ocorre que segundo Diotima existem outras espécies de amor, pois o amor pelo Bem seria um gênero, de modo que, teríamos outras espécies designadas para o amor; é nesse momento que Diotima faz alusão ao termo Poíesis 5, o que designa a passagem do não ser ao ser, trata-se de uma criação.
O que ela quer significar, é que há uma grande diversidade de designações que constitui o grande industrioso Eros:

205d“Há muitas maneiras de nos entregarmos ao amor, a dos que procuram ganhar dinheiro, dos que se dedicam à ginástica e a filosofia, ninguém diz que sejam amantes ou amados. Contudo, há uma espécie particular de amor cujos adeptos e seguidores recebem o nome de gênero, por inteiro: amor, amar, amantes...”

Diotima também esclarece que o homem ama aquilo que lhe parece bom. Resulta daí que o homem busca possuir o bem, de modo que, deve saber praticar o amor pelo bem.
A prática do amor pelo Bem consiste na criação da beleza segundo o corpo e segundo o espírito. Apesar de Sócrates não compreender no primeiro momento, Diotima explica melhor sua afirmação dizendo que “todos os homens são fecundáveis segundo o corpo e segundo o espírito”. Pois alega que existe um momento na vida em que o homem deseja gerar, não no feio, mas sim no belo, assim, a união do homem e da mulher é um ato de geração. Conforme Diotima trata-se de uma obra divina, onde o ser mortal participa da imortalidade pela fecundação; ainda argumenta enfatizando que a harmonia deste ato é constituída pelo desejo do belo, pois não há harmonia no feio, e quanto maior for a beleza, maior será o desejo de fecundar.
O amor é o desejo de geração no belo, com isso caracteriza-se a importância da procriação, que é justamente a possibilidade do mortal ser imortal, eterno “pois o amor é o desejo da eterna posse do Bem”. Com efeito, Eros é o desejo da imortalidade.
Diotima ainda vai a busca da causa desse desejo incessante de procriar no Belo, o que inclusive é característica de todos os animais. Sendo assim, ela determina que a causa principal é sempre a busca da imortalidade, do eterno, e isso ocorre através da procriação, onde se deixa sempre uma criatura jovem no lugar da velha, pois a velhice constitui o cessar do ser, e a juventude a plenitude do ser. Até o conhecimento, com o passar do tempo necessita de reflexão, de modo que, possa reter o que foge. “O esquecimento é a fuga do conhecimento, e a reflexão a recordação que substitui o que se esquece de modo que este parece sempre o mesmo”.




Portanto, o ser mortal nunca se mantém igual a si mesmo, como acontece com a natureza divina, mas deixa apenas outra criatura que envelhece e morre em seu lugar, é por esse processo que tudo o que é mortal participa do que é imortal. Pode-se inferir então que “todo ser ame seu descendente, pois é em vista da imortalidade que cada um revela este zelo e este amor”.
De acordo com Diotima essa busca pela imortalidade exige do homem muitos sacrifícios, pois no caso dos que são fecundos segundo o corpo “voltam-se de preferência para mulheres, e essa é a maneira de amar, já que julgam que criar filhos assegura a imortalidade, a sobrevivência da memória, plena felicidade, num futuro que lhes parece eterno”.
No caso daqueles que são fecundos segundo o espírito, e este é mais fecundo do que o corpo prevalece à criação no domínio da alma, isto é, a sabedoria e outras virtudes as quais abrange todos de poder inventivo.
Anteriormente foi dito que “existe um desejo incessante de procriar no belo”, mas também ocorre de existir desejo de procriar no feio, desde que este seja uma alma bela, generosa, e bem dotada, que caracteriza uma beleza sedutora; nesse tipo de relação concebe-se imensa instrução, afinal, com tamanha beleza de alma constitui-se grande poder de criação.
Nos fecundos segundo o espírito pode-se dizer que há mais solidez do que entre os fecundos segundo corpo, já que dos filhos espirituais obtêm-se maiores consagrações.
O caminho do Eros leva à superior beleza das almas, e ensina a amar mais a esta do que a dos corpos.
Conforme Diotima, o caminho inicia-se com a beleza do corpo, daí prossegue de maneira justa, atingindo a beleza das atividades humanas e dos modos de viver e das leis, e da beleza do conhecimento, por último o belo em si, por si, consigo mesmo como forma única sempre existente.

210 e – “Pois quem tiver chegado até este ponto no caminho de Eros, depois de ter contemplado as coisas belas numa gradação regular; quando atingir a meta suprema, contemplará a beleza de uma maravilhosa natureza, a própria beleza...” “... beleza eterna que não conhece nem nascimento nem a morte, que não esta sujeita à evolução de crescimento e diminuição, que não é bela por um lado e feia por outro, ou bela em um tempo feio no outro, bela neste lugar feio naquele”;


Portanto, Diotima conclui seu discurso com a seguinte afirmação: “a vida vale a pena ser vivida desde que se contemple a beleza essencial”, desta forma, o homem não se liga a fantasmas, e sim a virtudes verdadeiras, e este é amado pelos deuses, e se torna imortal.

Conclusão
O discurso de Sócrates constitui de modo preciso uma enorme distinção entre os outros discursos no Simpósio, pois este ensinamento recebido por Sócrates da sacerdotisa e vidente Diotima caracteriza um movimento do Eros àquilo que se pode reconhecer como o estado mais elevado do ser, que é a contemplação do belo em si.
O vértice teórico que Platão reproduz neste discurso é extraordinariamente singular aos demais, de modo que, determina a verdadeira essência da obra, porém é fundamental enfatizar que os outros discursos são elementos para o entendimento do conjunto na sua totalidade, não devendo ser negligenciados.

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Estudado por: Adriano de Araujo

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Bibliografia

Platão. O Simpósio ou do amor, Trad. Pinharanda Gomes, EDITORA LISBOA GUIMARÃES EDITORA, LDA.

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NOTAS


[1] Alguns autores pretendem que Diotima seja um personagem inventado por Platão, o que conflita com o hábito do filosofo de estabelecer seus diálogos com personagens reais. Diotima de Mantinéia é personagem real e, segundo Proclo, uma pitoniza pitágorica. Não obstante, Platão com seu pendor etimológico, extrai de ambos os nomes uma sugestão para profetícia (mantinikês) e para favor celestes (diotimas), predicados da Sofia. (coleção filosofia & ensaio – O Simpósio).

[2] Traços extraídos do pensamento de Heráclito (filosofo Pré-socrático).

[3] Depois de Homero: deuses menores, almas dos mortos, espíritos inferiores, entidades tutelares e protetoras dos vivos.

[4] Note-se que são características muito próximas às de Sócrates.

[5] Ação de fabricar, fabricação, Confecção de um objeto artesanal, composição de uma obra poética; Aristóteles explica o termo como uma prática na qual o agente e o resultado da ação estão separados ou de natureza diferente. A poiésis liga-se a arte de fabricação, construção, composição e a idéia de téckine.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

BREVE ESTUDO DO “IN INTERIORE HOMINE” EM CHARLES TAYLOR

Estudo do Cap VII – As Fontes do Self – A construção da identidade moderna.
Introdução
Considerei necessário que o estudo do texto fosse desenvolvido a partir de um desdobramento conceitual, por meio das notas; pois na medida em que nos deparamos com termos filosóficos não usuais, ou até mesmo esquecidos, se torna vantajoso reforçar o que já foi estudado. Afinal, por se tratar de um pensamento clássico (de Santo Agostinho), convém evitar certos equívocos tão comuns entre os estudantes mais desatentos; pois vale lembrar que desde a decadência escolástica até nossos dias a linguagem filosófica se tornou cada vez mais equívoca, eivada de nominalismo.
Portanto, além de procurar reforçar o sentido correto do enunciado, também haverá o empenho em esclarecer o significado de correntes citadas e estabelecer alguns apontamentos críticos sobre o texto estudado.
O principal objetivo é introduzir o pensamento de Santo Agostinho, principalmente a noção de “interiorização” presente na “doutrina da iluminação” e demonstrar seus fundamentos, na perspectiva da manifestação do “Self”, tão enfatizado por Charles Taylor no desencadeamento filosófico, isto é, na “construção da identidade moderna”.
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Desenvolvimento
Conforme Taylor, Santo Agostinho foi influenciado pelas doutrinas de Platão por meio de Plotino1, o que certamente corroborou no seu desenvolvimento espiritual.
Afinal, foi tal influencia que o libertou das concepções maniqueístas2, e daí sua noção de Deus e alma exigiria uma concepção imaterial; pois “a oposição cristã entre espírito e carne devia ser compreendida com o auxílio da distinção platônica entre corporal e o não-corporal”.
Santo Agostinho concebia um dualismo; ou seja, um reino superior em contraposição ao temporal, o imutável em contraposição ao mutável etc; também aderiu à idéia (eidos)3 de Platão, tomando-a como pensamento de Deus, que é eterno.
Taylor alega que Santo Agostinho teria se impressionado com a história da criação na obra Timeu de Platão; pois mesmo diferente da doutrina Cristã, tal obra carregava elementos semelhantes. Considera ainda, que Santo Agostinho teria também se apropriado da “definição platônico-pitagórica do fundamento ontológico da criação” 4.
Afinal, a doutrina da criação ex nihilo conforma-se com a noção de participação (methéxis) de Platão5; desse modo, a criação participa do pensamento divino, já que é originada nas “idéias” de Deus6.
Taylor também enfatiza a relação da criação originada pelo pensamento divino com a doutrina central do Cristianismo sobre a Trindade7; vejamos em suas palavras:

“Se tudo participa de Deus e se tudo é, em sua forma particular, como Deus, então o princípio-chave subjacente a tudo é o princípio da participação ou da própria Semelhança. Mas o arquétipo da semelhança-a-Deus só pode ser o próprio verbo de Deus, originado dele e da própria substância que ele, isto é, a segunda Pessoa da Trindade, por meio de que todas as coisas foram feitas”.

Daí decorre, segundo Taylor, que tudo deve ser entendido como Signo (signum)8, ou seja, como a “expressão externa do pensamento de Deus”.
Portanto, diferente do erro do maniqueísmo9, tudo é bom, e organizado para o bem; afinal, Deus é bom e como todas as coisas originam-se da sua expressão, tudo é bom10.
Taylor lembra que as afirmações do Gêneses I, “e Deus viu que era bom”, conformam-se com a doutrina de participação platônica da idéia de Bem; com efeito, verifica-se a estrutura da idéia na própria Trindade.
Santo Agostinho, também faz uso da imagem do Sol (que é usada a respeito da idéia de bem apresentada na Republica de Platão); porém, a fonte de luz, principio ordenador de todas as coisas neste caso é o Deus Cristão.
Constata-se a relação desta luz platônica com a luz do primeiro capitulo do Evangelho de João11; isto é, aquela luz invisível, que promana da própria alma, e nos conduz a sua fonte, o Criador.
Como o mundo criado participa das idéias de Deus, há ordenação12, o que implica na própria lei eterna; então, assumir a lei é ordenar-se a Deus. Assim, de acordo com Taylor, para Platão, como para Santo Agostinho, o “bem dos seres humanos envolve ver e amar essa ordem”, pois se trata da visão da Razão (ratio)13.
Em Santo Agostinho o amor é capital, o que não ocorre em Platão que preservava um certo equilíbrio entre amor e atenção.
Taylor procura explorar a continuidade entre as doutrinas dos filósofos (Platão e Santo Agostinho), e considera que “a oposição de espírito/matéria, superior/inferior, eterno/temporal, imutável/mutável é descrita por Santo Agostinho, não apenas ocasional e perifericamente, mas central e essencialmente em termos de interiro/exterior”; lembra também que o Santo faz distinção entre homem interior e exterior em (De Trinitate, XII. 1), o homem exterior é o animal, corporal, sensitivo, imagético, dotado de memória, já o homem interior é a alma, aquele que possibilita a ascese, ora, quando nos voltamos para nós mesmos nos conduzimos do interior ao superior.
É no interior que encontramos a verdade, é o que esta dentro (intus) que importa em Santo Agostinho, pois é dentro de nós mesmos que vivenciamos Deus.
A partir daí, Taylor, resolve explorar mais as diferenças entre Platão e Santo Agostinho; reconhece que ambos admitem a relação de Deus e a idéia de Bem, de que Deus assim como o Sol também é fonte de luz; também encontram dificuldades em atingir a verdade, enquanto realidade mais elevada.
Em Platão o conhecimento do “princípio Supremo” é alcançado “observando o domínio dos objetos que ele organiza” (campo das idéias), tudo depende do nosso olhar, a visão da alma deve estar dirigida para o campo certo.
Em Santo Agostinho o conhecimento do “princípio Supremo” nunca é alcançado diretamente, com exceção, da experiência mística (aquele despojamento do próprio existir por amor a Deus, ou como o caso do apóstolo Paulo, na estrada de Damasco); mas é alcançado no “inter-legere” (no ler por dentro), no olhar do nosso interior; pois “aqui a luz de Deus não está apenas lá fora, iluminando a ordem do Ser, como está para Platão, é luz interior”; é a “luz que ilumina todo homem que vem ao mundo” (João 1,9).
Taylor observa que o encontro das Escrituras Sagradas com a Filosofia de Platão provocou grandes mudanças, principalmente no que concerne à metáfora da luz de Platão com a luz de João.
Portanto, verificasse que Santo Agostinho, “muda o foco do campo dos objetos conhecidos para a própria atividade de conhecer”, valoriza-se a atitude reflexiva.
Em seguida, Taylor, faz uma apreciação dos modos mais radicais de “voltar-se para si mesmo”, da atitude reflexiva, comum entre os antigos moralistas, e ainda cita Foucault que trabalhou com o tema do “cuidado consigo mesmo” 14; considera que a vida moral mais elevada pode ser invocada a partir de não se dar importância às coisas externas (riquezas, poder, sucesso, prazer etc;) e “mais importância à própria condição moral”, mais “cuidado consigo mesmo”.
Também chama a atenção no modo de viver atual, na consciência que temos na relação com as coisas e de nós mesmos, enfatiza o “experimentar nossa experiência”, o “concentrar-nos na forma como o mundo é para nós”.
Trata-se de “assumir uma atitude de reflexão mais radical ou de adotar o ponto de vista da primeira pessoa”; o que importa é o reconhecer-se na primeira pessoa, pois certamente o que não (ou menos) importa, são as coisas exteriores (propriedades e poder).
Taylor considera que houve um despertar, uma “virada”, de Santo Agostinho para o “Self”, o qual caracterizou uma verdadeira reflexão radical, o que tornou a “linguagem da interioridade irresistível”; pois ele considera que aquela “luz interior” equivale ao tornar-se primeira pessoa, já que significa “o estar presente para si mesmo” 15.
Assim, passa-se a conceber Santo Agostinho como precursor do pensamento moderno; ou seja, da tradição epistemológica desde Descartes e tudo que se originou dela na modernidade16.
Taylor reconhece a importância do ato reflexivo proveniente da condição de primeira pessoa, pois considera que Santo Agostinho deu o “passo protocartesiano decisivo: mostrar ao interlocutor que ele não pode duvidar da sua própria existência, pois, se você não existisse, seria impossível ser enganado”, ou seja, a verdade interior, condição da nossa existência, é sempre anterior ao erro17.
Considera-se que Santo Agostinho tenha sido autor do “Cogito”, já que tornou o ponto de vista da primeira pessoa essencial na busca da verdade.
A Verdade Suprema (Deus) é confirmada na experiência do conhecimento, no ato de conhecer contemplamos as verdades, e quanto mais adentramos em nosso próprio interior, mais a verdade se torna superior; logo, assentimos a existência de Deus, que é a Verdade propriamente, e que se encontra acima da razão humana. Como alega Taylor:

“... é nessa atividade paradigmática de primeira pessoa, quando luto para me tornar mais inteiramente presente para mim mesmo, para realizar todo potencial que reside no fato de conhecedor e conhecido serem um só, que chego da forma mais poderosa e convincente à consciência de que Deus esta acima de mim”.

Taylor ainda salienta que, conforme Santo Agostinho, é na memória (aquela “luz dos espaços temporais”) que voltamos para Deus, pois é onde a criatura reconhece o Criador, trata-se de um ato da alma que “lembra-se de voltar-se para o Senhor como para a luz pela qual foi de algum modo tocada, mesmo quando de costas para ele”18; desse modo mergulhar na memória leva para o além, pois o “caminho de dentro leva para cima”19.
O princípio intelectivo interior é nosso mestre, Deus nos move para o inteligível; assim, quando nos voltamos para o interior, voltamo-nos para o princípio ordenador (Deus), e quanto mais interior, mais superior e verdadeiro.
Taylor considera a importância da interioridade em Santo Agostinho, pois alega que:

“Representa uma doutrina radicalmente nova de fontes morais, em que o caminho do Superior passa por dentro. Segundo essa doutrina, a reflexão radical assume novo status, porque é o espaço em que encontramos Deus, em que nos voltamos do inferior para o superior”.

Desse modo, constata-se a relevância da compressão da tradição agostiniana no desenvolvimento da Filosofia moderna, pois a partir de Descartes já se verifica a transposição de tal tradição, pois o ocidente é inspirado pela espiritualidade agostiniana.
Também se considera as provas da existência de Deus na perspectiva cartesiana, sob influência agostiniana; aliás, Taylor menciona o movimento demonstrativo da existência de Deus também em outros filósofos modernos, e aponta a forte influencia agostiniana.
Assim, fica confirmada a antecipação agostiniana acerca das conclusões de Descartes, isto é, do proto-cogito; com efeito, as formulação das “idéias inatas” já estavam, de certo modo, presentes na memória de Santo Agostinho20.
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Conclusão

Charles Taylor deixa explícito o seu objetivo, isto é, em fundamentar “as fontes do Self” no desdobramento Filosófico. Entretanto, não é possível ignorar certas realidades no estudo da Filosofia em função do intento do autor.Afinal, é conveniente apontar certas realidades, como por exemplo, a de que Santo Agostinho nunca separarou a Filosofia da Teologia; ora, no séc. XVII, a reforma filosófica de Descartes obteve como resultado separar a filosofia da Teologia, pois recusando à Teologia o direito de controle e a função de norma negativa para com a Filosofia, isto equivalia a dizer que a Teologia não é uma ciência, mas simples disciplina prática, e que a Filosofia ou Sabedoria do homem é ciência absolutamente suprema que não admite outra que lhe seja superior (tomar a razão como ponto de partida é o erro que Santo Agostinho mais repudiava, ver notas: 2, 3, 15, 16) – Descartes, introduzia o principio de filosofia racionalista que pretende vedar a Deus o direito de nos dar a conhecer pela revelação verdades que ultrapassam o alcance natural de nossa razão; mas se Deus nos revela tais verdades, necessariamente a razão humana esclarecida pela fé trabalhará sobre elas como sobre princípios de conhecimentos, constituindo uma ciência que será a Teologia. E se a Teologia é uma ciência, é preciso reconhecer-lhe a função de norma negativa em relação à Filosofia, desde que a mesma coisa não pode ser verdadeira em Filosofia e falsa em Teologia”21.
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Estudado por: Adriano de Araujo
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NOTAS:

1 Vale notar que “Santo Agostinho encontrou nas obras de Plotino, não a filosofia pura de Platão, mas uma síntese original de Platão, Aristóteles e dos Estóicos”. GILSON, ÉTIENNE – Deus e a Filosofia. Lisboa/ Portugal: Edições 70; 2002.


2 Acerca do maniqueísmo, Santo Agostinho reconhece haver recorrido aos inimigos da Igreja a fim de obter instrução (“De utilitate credendi” 6,13); o que considerou mais tarde o maior erro, pois submeteu a doutrina da Igreja ao juízo imaturo de sua própria razão. Afinal, desejara começar pela ciência, e esta pretensão soberba resultou dos ensinamentos absurdos dos maniqueus. GILSON, ÉTIENNE – História da Filosofia Cristã . Petrópolis: Editora Vozes; 2004.
3 A tradução exata do termo “Idéia” seria forma; pois em Platão seria algo que constitui o objeto específico do pensamento, a saber, a que o pensamento se remete de maneira pura, aquilo sem o que o pensamento não seria pensamento: em suma, a idéia platônica não é absolutamente um puro ente de razão. É um ser, antes, é o ser que é absolutamente, o verdadeiro ser. REALE, GIOVANNI – Para uma nova Interpretação de Platão (Capitulo décimo).

4 Ver Do Livre-arbítrio, II.vii. 24 e II.xi.30ss.

5 Acerca da “participação” devemos esclarecer que Platão considerava que os Universais só poderiam existir fora da realidade sensível, pois não poderia haver definição Universal naquilo que sofria uma contínua mudança; logo, houve a necessidade de sustentar outras realidades, as idéias (eidos), de tal modo que, os sensíveis existem ao lado delas e delas recebem seus nomes. Com efeito, havendo essa pluralidade das coisas sensíveis que teriam o mesmo nome das Idéias (formas), haveria uma “participação” (methéxis) nas formas ou como diziam os pitagóricos “imitação”.

6 Afinal, as idéias estão na mente de Deus, ora, não esta a idéia de estátua na mente do escultor, como também, na própria estátua? Ou, por acaso a estátua é informe? Não; a estátua não é informe; toda a realidade, toda coisa real possui certa forma. – MORENTE, G. MANUEL – Fundamentos da Filosofia (lições Preliminares).

7 O mistério da Trindade é a doutrina central da fé Cristã. Sobre ele estão baseados todos os outros ensinamentos da Igreja. No Novo Testamento há freqüente menção do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Uma leitura atenta destas passagens escriturísticas leva-nos a uma inconfundível conclusão: cada uma destas Pessoas é apresentada como tendo qualidades que só a Deus podem pertencer. Mas se há apenas um só Deus, como pode ser isso?
A Igreja estudou este mistério com grande solicitude e, depois de quatro séculos de investigações, decidiu expressar a doutrina deste modo: Na unidade da divindade há três Pessoas - o Pai, o Filho e o Espírito Santo - realmente distintas uma da outra. Assim, nas palavras do Credo de Atanásio: "O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus, e, no entanto não são três deuses, mas um só Deus".

8 Podemos entender signo (signum) como aquilo pelo que alguém chega a conhecer algo de outro.

9 O maniqueísmo origina-se no dualismo de Maniqueu, que procura combinar com as idéias Cristãs o dualismo de Zoroastro (mazdeísmo), ou seja, os dois princípios eternos do bem e do mal.
10 Para Santo Agostinho “nenhuma natureza é má e esse nome indica apenas a privação do bem” (De Civitate Dei, XI, 22); “todas as coisas são boas, e o mal não é substancia, porque se fosse substancia seria bem” (Confessionum,VII, 12). De fato, para o “Mestre do Ocidente” (como o Santo é conhecido) o mal não é propriamente uma natureza, mas a corrupção dela por meio do pecado; assim uma natureza má, é uma natureza corrompida, mas não seria má enquanto natureza, e sim naquilo que se degenerou. Portanto, a presença do mal é como as trevas, e do bem como a luz, logo, quanto menos luz mais trevas.
11“Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” (Evangelho de São João 1, 3/5).

12 Devemos compreender o sentido clássico do termo “ordem”; de ordo é algo dinâmico, "em direção a", ordo ad...: ordo ad finem, ordo ad invicem, ordo ad alterum (dirigido a um fim, dinâmica recíproca, dirigido a outrem). Os antigos falam de ordem também como ordem moral, a dinâmica do agir humano de acordo com a realidade, de acordo com a natureza. E, portanto, o pecado aparece como um ato desordenado, ao qual falta ordem (actus inordinatus I-II,71,1); um ato não só contrário à ordenação de Deus, mas em que o próprio homem - em si mesmo, em seu interior - se desordena.

13 O termo “Razão” (ratio) deve ser entendido no sentido diferente daquele apresentado pelos modernos, isto é, a razão do "racionalismo", nem sequer somente como a faculdade racional humana; pois nesse caso a “Razão” (ratio) é totalmente ordenada ao espiritual, afinal, a razão deve abrir-se e acender-se à verdade revelada, para construir como sabedoria infusa, a meditação e compreensão, no mistério da fé, da palavra que se revela e vive na Igreja do logos encarnado.
Assim, a “Razão” empregada por Santo Agostinho tem outra conotação e alcance; importa saber que o vocábulo grego Logos (razão, palavra) é empregado para designar a segunda Pessoa da Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação, o responsável pela articulação intelectual das coisas. E a Criação deve ser entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, design das formas da realidade, feito por Deus através do Verbum, Logos. o que nos distancia da interpretação de Taylor; que ao aproximar demais (a partir do conceito de “razão”) Santo Agostinho e Platão parece não ter considerado tal aspecto misterioso, a Sabedoria Sobrenatural, que indubitavelmente, era inexistente no contexto de Platão.
14 Ver Foucault – História da sexualidade, vol3, Cuidado de si, Rio de Janeiro, Graal, 1993.
15 Ao enfatizar o Self na Filosofia agostiniana, Taylor ignora o verdadeiro sentido da “doutrina da iluminação”, a qual foi elaborado sob o influxo de Platão, de Plotino e Porfírio, com um forte fundamento verdadeiramente Cristão; Santo Agostinho desperta (ou dá uma virada), de fato, para um contato com Deus no íntimo da consciência; pois as verdades imutáveis são alcançadas por um ato consciente de interiorização, no qual a razão (ratio) toma presença da consciência de Deus. É em virtude desta presença divina que a Verdade ou Deus, se dá a conhecer à razão, mediante à recordação que lhe dá acesso à infinidade de Deus.
Considerar a “luz interior” ignorando a presença de Deus, é o mesmo que afirmar iluminação sem luz. Afinal, o que é evidente em Santo Agostinho, não é “estar presente para si mesmo”, mas estar presente para Deus.
16 Decerto houve muita influencia no pensamento moderno com relação a Filosofia agostiniana, entretanto, convém notar os muitos desvios causados pela subjetividade moderna; e também, no fato dos modernos caírem no mesmo erro que o Santo caíra na sua juventude seguindo os maniqueus, ou seja, começar pela ciência humana (racionalismo) em vez da verdade suprema (Deus).

17 Vale lembrar que tal postura é uma reação contra os céticos, afinal, “não há erro capaz de destruir a verdade implícita na própria possibilidade do erro, a saber: a existência do sujeito que erra. A verdade esta sempre um passo adiante do erro”. “Na opinião de Santo Agostinho o ceticismo é uma reação do espiritualismo platônico ao materialismo estóico” GILSON, ÉTIENNE – História da Filosofia Cristã . Petrópolis: Editora Vozes; 2004.

18 Ver De Trinitate, XIV. Xv.21.

19Convém notar que em Santo Agostinho não conhecemos por meio de recordação ou reminiscência do tipo platônico, mas por um outro tipo de recordação, isto é, um ato consciente de interiorização, no qual a razão toma consciência de Deus. É em virtude desta presença divina que a Verdade, ou Deus, se dá a conhecer à razão, mediante a “recordação” que lhe dá acesso à infinidade de Deus. GILSON, ÉTIENNE – História da Filosofia Cristã . Petrópolis: Editora Vozes; 2004.

20 Decerto é tentador apontar as similitudes do pensamento do “Mestre do Ocidente” com as construções filosóficas dos modernos; entretanto, Santo Agostinho nunca duvidou da existência de Deus. Significa que, “para ele a existência de Deus é conhecida por todos os homens, com exceção dos que têm a natureza absolutamente corrompida, com essa ressalva a humanidade é unânime em reconhecer um Deus Criador. A questão da existência de Deus não constitui um problema para Santo Agostinho; mesmo que tenha se dedicado a tal questão de maneira muito pessoal” GILSON, ÉTIENNE – História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Editora Vozes; 2004.
21 A teoria da dupla verdade, segundo a qual a mesma coisa pode ser verdadeira em Filosofia e falsa em Teologia, foi inventada pelos averroístas da Idade Média, que queriam escapar assim das censuras da Igreja. Sob formas diversas ele foi retomado nos tempos moderno por todos aqueles que (como os modernistas atuais) querem conservar o nome de Cristãos e professar livremente a Filosofia as doutrinas destruidoras de tal ou tal verdade dogmática.

ESTUDO DE ALGUNS TRECHOS DA OBRA: "UMA TEORIA DA JUSTIÇA" DE JOHN RAWLS

Exame do: princípio aristotélico, da definição de bem aplicada às pessoas e a auto-estima, das excelências e da vergonha.
Desenvolvimento:

1. O princípio aristotélico

Rawls concebe um formalismo na definição de bem, considerando o bem como um “plano racional da vida”, ou seja, como algo deliberado (com racionalidade); admite a complexidade de tal racionalidade deliberativa e princípios de escolha racional no aspecto conceitual.
Também alega que há necessidade de “observação de fatos genéricos” antes da dedução de planos racionais; pois, segundo sua concepção, não podemos saber quais objetivos tais planos incitam.
Com efeito, Rawls reconhece a existência de “características genéricas dos desejos e necessidades humanas”, pois aponta o desenvolvimento humano em suas fases (considerando as circunstâncias fisiológicas); depois verifica que os “planos” devem adequar-se às faculdades1 humanas, isto é, ao próprio desenvolvimento, a educação e treinamento conforme o propósito que se queira atingir, e também, à “interdependência social” (a qual deve ser adequadamente apreciada).
Considera que a “estrutura básica” é o meio pelo que certos planos têm mais êxito que outros; de tal modo que, em certos casos há concordância com a justiça, isto é, a partir da “contribuição para com o bem comum”.
E mesmo que exista arbitrariedade, Rawls enfatiza a prioridade do justo, que restringe as “contingências” que limitariam tais planos.
Assim, procura esclarecer e comentar os “bens humanos” e as “restrições da justiça”; ora, considera que o primeiro consiste “nas atividades e finalidades que têm as características, não importando quais sejam, que lhes confere um lugar importante, até mesmo central, na vida”, tais “atividades e finalidades” devem ser convenientes ao “princípio de justiça”, de modo que a não conveniência legitima a existência das restrições.
Acerca do “princípio aristotélico”, Rawls afirma que: “em circunstâncias iguais, os seres humanos sentem prazer ao pôr em prática as suas capacidades (sejam elas habilidades inatas ou treinadas), e esse prazer cresce na medida em que cresce a capacidade posta em prática, ou a sua complexidade”.
Segundo Rawls, na medida em que o ser humano torna-se competente na realização de uma atividade, também possui maior prazer em exerce-la, pois é desse modo que exprime a “idéia intuitiva” presente em tal princípio; assim, exemplifica com o jogo de xadrez e dama, pois o primeiro é mais complexo que o segundo, entretanto, aquele que joga o primeiro encontra maior prazer do que aquele que joga o segundo; e o mesmo ocorre na álgebra com relação à aritmética.
Rawls reconhece que o princípio aristotélico é motivacional; pois “explica muitos de nossos maiores desejos, e também, porque preferimos fazer certas coisas e não outras”. Concluí que se trata de uma “lei psicológica”.
Afinal, treinando a capacidade para as coisas complexas, as pessoas tendem a ser mais hábeis, portanto, melhores nas suas realizações. E até mesmo o contato com pessoas habilidosas nos demove a ser como elas.
Embora encontremos dificuldades oriundas na relação de satisfação em executar uma atividade e as tensões cada vez maiores no exercício de tais atividades, que se tornam mais complexas mediante nosso avanço; Rawls indica um equilíbrio, onde cessa o esforço para aumentar o desenvolvimento da capacidade do sujeito.
Como os prazeres em exercer atividades crescem lentamente, e os esforços são cada vez maiores na aprendizagem, verifica-se uma desistência na medida em que tais atividades se tornam muito complexas; com efeito, haverá atividades que nunca serão desejadas.
O princípio aristotélico é racional, e é determinado por ações justas; e o desenvolvimento das pessoas são limitados pelas circunstancias, de modo que, se realizem atividades na medida do possível.
Reconhece-se que o princípio aristotélico promove o interesse comum, e Rawls alerta para interpretações equivocadas, demonstrando que fatos sociais, como também, psicológicos corroboram no desenvolvimento.
Cabe às instituições sociais utilizarem adequadamente o princípio, pois sempre haverá o desenvolvimento em algum sentido; pois “conforme as práticas sociais e as atividades cooperativas vão sendo construídas pela imaginação de vários indivíduos, elas exigem de modo crescente um conjunto complexo de atividades, e novos modos de desempenha-las”, “... o processo é movido pelo prazer de praticar atividades naturais e livres”.
Em tal princípio não há preferências por atividades; entretanto, que “em circunstancias iguais, preferimos atividades que dependem de um maior repertório de capacidades desenvolvidas e mais complexas”.
Os talentos, inclinações e circunstancias sociais são decisivos na escolha da pessoa pelas diversas cadeias de atividades e dos seus desenvolvimentos; mesmo assim, o princípio “afirma, apenas, uma propensão a ascender”.
Convém notar que a ascensão é determinada pelos recursos que dispomos (energia, tempo etc;), o que impede que permaneçamos em pleno desenvolvimento das cadeias de atividades que aparecem.
Embora possa haver objeção acerca da veracidade do princípio aristotélico, os comportamentos (dos animais e crianças) corroboram sua presença, como também, o aspecto evolutivo dos sujeitos.
A verdade é que na teoria do Bem o princípio aristotélico caracteriza um fato psicológico, e também em conjunto com fatos genéricos e concepções racionais determina e explica nossos “juízos de valor” 2.
Rawls considera um vinculo muito forte entre o “bem primário da auto-estima” e tal princípio; daí sua importância na psicologia moral.

2. A definição de Bem aplicada às pessoas

Após conceber o Bem de “uma pessoa como a execução bem-sucedida de um plano racional de vida”; Rawls concebe o conceito de Bem em outros temas da filosofia moral.
Entretanto, há uma preocupação anterior em estabelecer algumas considerações acerca dos bens primários, considerando hipoteticamente uma definição restrita de bem.
Para a execução de um plano racional de vida tais bens são necessários; principalmente supondo a posição original em que as pessoas se encontram, de modo que, haja “liberdades e oportunidades” para alcançar seus propósitos.
Rawls considera que na explicação de uma lista de bens primários deve-se reconhece-los pela “racionalidade, juntamente com os fatos genéricos sobre as necessidades e habilidades humanas, as suas fases características e exigências de desenvolvimento, bem como o princípio aristotélico e as necessidades de interdependência social”.
Rawls enfatiza a noção de bem como racionalidade, pois alega que mesmo em distintas filosofias tal noção é aceita e abrangente; e de uma teoria restrita passa a conceber uma teoria plena em função da posição original.
Assim, ao explorar o “valor moral”, Rawls demonstra em primeiro lugar o reconhecimento recíproco entre pessoas de “propriedades racionais”, e em segundo lugar seus “desempenhos nos diversos papeis” com o devido grau de importância. Verifica que há admissão recíproca de restrições por via racional em uma sociedade bem ordenada.
Admite como necessário reconhecer atributos como: inteligência, imaginação, força, resistência etc; para que se possa conceber uma conduta justa, pois do contrário ocorreriam danos sociais.
Examina a distinção dos dotes naturais e virtudes morais, concebendo os primeiros como oriundos da educação e treinamentos, e os últimos como “atitudes habituais que nos levam a agir segundo princípios justos”.
Rawls caracteriza a “boa pessoa” como sendo aquela que dispõe de racionalidade, e que as outras queiram encontrar na posição original para uma sociedade bem ordenada. Convém notar que na sua filosofia não há elementos aprioristicos.
Ele reconhece uma boa ação como um bom ato que se comete ao outro, desde que o bom ato seja aquele em que exista liberdade de ação, isto é, desde que não haja determinação ou que contemple o dever natural reconhecido como “principio de ajuda mutua”.
Ainda são apontados os homens injustos, maus e perversos; sendo o primeiro aquele que busca atingir “o domínio em nome de objetivos como a riqueza e a segurança”; o segundo como aquele que “deseja o poder arbitrário porque aprecia o senso de dominação que o seu exercício lhe concede”; e o terceiro como aquele que “aspira o domínio injusto precisamente porque este viola o que seria objeto de acordo de pessoas independentes em uma posição original de igualdade”, “... ele é movido por amor pela injustiça”.
Com efeito, Rawls concebe uma teoria plena, e considera possíveis as muitas variações de valor serem explicadas.

3. Auto-estima, excelências e vergonha.

Rawls reforça a concepção de auto-estima como bem primário e alega que é o mais importante, pois considera tal certeza a partir do bem enquanto racionalidade.
A auto-estima possui dois aspectos, o primeiro de que a pessoa é convicta na realização de seu “plano de vida”; o segundo de que a pessoa possui confiança em suas habilidades, como também, de realizar suas intenções.
A evidencia do referido bem primário é a de que não podemos insistir em nossos planos quando nos sentimos impotentes, e “duvidamos de nós mesmos”.
E na posição original tal bem primário é de capital importância, e a justiça como equidade corrobora na sua realização.
O senso de nosso próprio valor é condição adquirida a partir da concepção de bem como racionalidade, ou seja, concepção que “caracteriza o primeiro aspecto da auto-estima”.
Conforme Rawls o princípio aristotélico é reforçado no exercício de atividades; de maneira que, na ausência de tal princípio, as atividades se tornam desinteressantes; com efeito, a pessoa deixa de ser confiante no exercício de suas habilidades.
Rawls também salienta a relação de reciprocidade no reconhecimento de habilidades entre pessoas que são confiantes; considera que se apreciam mutuamente, o que indubitavelmente corrobora um “único sistema de atividades que todos podem apreciar e desfrutar”. A “democracia no julgamento dos objetos uns do outros é o fundamento da auto-estima em uma sociedade bem organizada”.
Em seguida Rawls passa ao exame da auto-estima, as excelências e a vergonha; concebe a vergonha como sendo “o sentimento que uma pessoa tem quando seu amor próprio é atacado, ou quando sofre um golpe em sua auto-estima”; também faz uma breve distinção com o “pesar” considerando que ambos (vergonha e pesar) dizem respeito a nós mesmos, embora, a vergonha implique em relação intima com nossa pessoa e os “outros de quem dependemos para confirmar nosso valor”.
No caso das excelências são bens (atributos diversos) que “nos possibilitam realizar um plano mais satisfatório da vida, aumentando nosso senso de capacidade”, “... são bens do ponto de vista de todos” que aumentam nossa auto-estima.São as excelências da pessoa que possibilitam a realização nas relações sociais, e na ausência de muitas excelências há o envergonhamento; afinal, não havendo reconhecimento de atributos pode ocorrer o enfraquecimento da auto-estima que é um bem fundamental para o princípio aristotélico.
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Estudado por: Adriano de Araujo
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NOTAS:

1 O termo “Faculdade” é empregado como capacidade natural de fazer algo.
2 Nota-se que quanto mais aplicável empiricamente for o princípio aristotélico, maior será a chance de congruência dos princípios de justiça e as concepções de Bem. Com efeito, maior será a chance de aproximar-se do equilíbrio reflexivo.