sexta-feira, janeiro 19, 2007

BREVE ESTUDO DA ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS E DAS DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO EM DAVID HUME

Estudo da Seção III e IV da Investigação Acerca do Entendimento Humano
Introdução
A “Investigação acerca do Entendimento Humano” divide-se em doze Seções, das quais estudaremos a III e IV; o objetivo da obra é determinar os poderes do entendimento humano e os limites de sua aplicação.
Na obra, David Hume demonstra as matérias sobre as quais o entendimento trabalha e se organiza; assim, procura dar ênfase às dificuldades existentes desse trabalho.
Aquilo que designo enquanto “matérias” são as percepções (impressões e idéias, sendo estas cópias daquelas); também é fundamental ressaltar que, de acordo com Hume, não há idéias inatas, pois toda idéia é derivada das impressões.
Para que não haja dificuldades na compreensão do que será exposto, convém lembrar os sentidos dos termos “impressões” e “idéias” em Hume.
As “impressões”, segundo Hume, são os fenômenos psíquicos atuais, às vivencias de apresentação atual; e as “idéias” os fenômenos psíquicos reproduzidos, às representações de tais vivencias. Sendo assim, no caso das “impressões”, são concebidas todas as sensações, paixões e emoções que nos são apresentadas pela primeira vez; já as “idéias” são as imagens debilitadas dessas sensações1.
Nosso propósito será estudar os três mecanismos pelo qual as idéias se associam; isto é, a semelhança, contigüidade (no tempo ou no espaço) e a causalidade (III Seção); como também, a impossibilidade de demonstração (ou percepção) da relação de causa e efeito de modo a priori, isto é, considerando que tal relação só pode fundar-se na experiência.
Portanto, nos encontraremos diante de dúvidas acerca das conclusões extraídas da experiência e muitas outras dificuldades apresentadas por Hume (IV Seção).
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Desenvolvimento

Estudo da III Seção (Da Associação de Idéias):

Hume considera evidente a existência de um principio de conexão (ou associação) entre as diferentes idéias (representações imaginárias), pois é a partir de tal princípio que se explicaria a regularidade e métodos empregados por meio da memória e imaginação. Desse modo, ele reforça exemplificando com a comunicação (conversas), em que, qualquer interrupção particular das conexões de idéias impossibilita a regularidade da seqüência, fazendo com que se note e rejeite tal interrupção.
Assim, alerta que mesmo no sonho e devaneios as diferentes idéias se associam; afinal, mesmo em tal condição há seqüências, encadeamentos imagéticos. E mesmo que haja diferentes línguas (idiomas) “as palavras que exprimem as idéias mais complexas quase se correspondem entre si, o que é uma prova segura de que as idéias simples, compreendidas nas idéias complexas, foram ligadas por algum princípio universal (associação) que tinha igual influência sobre todos os homens”.
Então, Hume apresenta os princípios de associação2, são eles:

Princípio da Semelhança:

“Um quadro conduz naturalmente nossos pensamen­tos para o original”.

Apreciação:

Ora, os estados psíquicos tendem a evocar os estados (idéias ou imagens) anteriores que lhes são semelhantes.

Princípio da Contigüidade (no tempo e no espaço):

“Quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros”.

Apreciação:

Dois estados psíquicos podem evocar-se quando foram pensados ao mesmo tempo ou um em seguida ao outro.

Princípio de Causalidade:

“E, se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha”.

Apreciação:

Tal estado psíquico implica os estados anteriores, pois a regularidade, as associações por “semelhança” e “contigüidade” ao repetirem-se por muitas vezes, isto é, repetirem-se as mesmas impressões; decerto ocorrerá que quando se pensar em tais impressões, inevitavelmente surgirá a idéia de outra por sucessão. Assim, a causalidade não deixa de ser um caso particular de associação de idéias3.


Considerando a dificuldade de provar e justificar que a enumeração de tais princípios de associação esta completa, Hume resolve fazer um exame cuidadoso. Então, recorre à literatura e às narrativas históricas, como fornecedoras de numerosos exemplos do uso dos princípios de associação de idéias; de tal modo que, ele demonstra que em tais produções (literárias ou similares) só encontramos sentido porque existe associação de idéias.

Afinal, segundo Hume:

“Se ao introduzir numa com­posição personagens e ações estranhas umas às outras, um autor im­previdente destrói esta comunicação de emoções, que é o único meio de interessar ao coração e despertar as paixões no grau desejado e no momento apropriado”.

E concluí acerca dos princípios:

“A explicação completa destes princípios e de todas as suas conseqüências nos conduziria a raciocínios muito pro­fundos e prolixos para esta investigação. É-nos suficiente presente­mente ter estabelecido esta conclusão: os três princípios de todas as idéias são as relações de semelhança, de contigüidade e causalidade”.


Estudo da IV Seção (Dúvidas Céticas Sobre as Operações do Entendimento)

Primeira Parte:

Hume divide os objetos da razão em dois gêneros: “relação de idéias” e de “fatos”4.
Na primeira relação (idéias) encontramos a geometria, álgebra e aritmética e toda intuição certa; exemplo:

“Que três vezes cinco é igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números”.

Segundo Hume, tal proposição existe apenas na operação do pensamento e não depende de algo existente em alguma parte do Universo, daí resulta que afirmações análogas são verdadeiras e independem da natureza5.
Na Segunda relação (fatos), Hume considera que os objetos da razão humana são determinados de outro modo; ele acredita “que o contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completo acordo com a realidade”; exemplo:

“Que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá”.

Significa que para Hume a existência “extramental” nunca poderá ser precisada; assim, ele procura investigar a evidencia que supostamente lhe asseguraria um fato que não está ao alcance dos sentidos, e reconhece que “todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundamentar-se na relação de causa e efeito”.
Segundo Hume, “todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza”; e “supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele”. Afinal, inferiremos, por exemplo, que numa ilha presentemente deserta já estiveram seres humanos (causa) se nela acharmos um relógio ou algum outro objeto artificial (efeito); ou que um pedaço de cera se fundirá (efeito) ao ser aproximado do fogo (causa).
Do que foi dito, verifica-se a importância de investigarmos como obtemos o conhecimento de causas e efeitos.
Hume sustenta que o conhecimento da relação de causa e efeito “não é, em nenhum caso, alcançado por raciocínios a priori, mas provém inteiramente da experiência, quando encontramos que objetos particulares quaisquer apresentam uma conjunção constante uns com os outros”. Portanto, diante de objetos, de suas qualidades sensíveis, jamais poderemos inferir racionalmente quais objetos ou eventos são suas causas ou serão seus efeitos.
Um homem perfeito quanto às suas faculdades cognitivas, mas sem nenhuma experiência (como teria sido o caso de Adão, logo ao ser criado), não poderia inferir que a água tem o poder causal de sufocar ou o fogo de queimar. O mesmo vale para qualquer outra inferência acerca de existência ou questão de fato.
Com grande empenho, Hume, demonstra com muitos exemplos particulares que as causas e efeitos não podem ser descobertos pela razão, e sim, pela experiência (vivencia); ainda enfatiza o caso de objetos familiares, em que somos propensos a imaginar que podemos descobrir seus efeitos pela mera operação da razão, o que certamente é uma ilusão devida a influencia do costume6.
Desse modo, qualquer conhecimento de causa e efeito a priori é pura invenção ou imaginação arbitrária; nem mesmo as conexões entre causa e efeito são de natureza necessária.
Nas palavras de Hume:

“É preciso que um homem seja muito sagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes estados dos corpos”.

Hume considera que a geometria e a matemática mista não podem suprir nossas limitações, pois apenas auxiliam na aplicação das leis naturais descobertas empiricamente.


Segunda Parte:

Na medida que Hume concebe soluções para suas dificuldades, se depara com novas dificuldades, pois como diz:


“Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos racio­cínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda continuar­mos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser de solução e explicação mais difíceis”.


Com efeito, diante das dificuldades oriundas de sucessivas interrogações, Hume revela-se modesto e aconselha tornar “a ignorância uma virtude”.
Hume procura facilitar sua tarefa, pois afirma que nossas conclusões acerca das experiências de causa e efeito não são “fundadas em raciocínios ou sobre qualquer processo do entendimento”; assim, sua única proposta é defender tal posição.
Ele nota grande limitação de nosso conhecimento dos “segredos” da Natureza; afinal ela nos fornece:

“...o conhecimento de umas poucas qualidades superficiais dos objetos, ocultando-nos os poderes e princípios dos quais a influência desses objetos depende inteiramente.” “Não obstante essa ignorância dos poderes e princípios naturais, sempre presumimos, quando vemos qualidades sensíveis semelhantes, que terão poderes secretos semelhantes, e esperamos que serão seguidas de efeitos semelhantes aos que já experimentamos... Agora este é um processo da mente ou pensamento cujos fundamentos gostaria muito de conhecer. Todos concordam que não há conexão conhecida entre as qualidades sensíveis e os poderes secretos; e que, por conseqüência, a mente não é levada a formar conclusões acerca de sua conjunção constante e regular a partir de nada que se saiba de sua natureza. Quanto à experiência passada, pode-se conceder que dá informação direta e certa apenas e precisamente dos objetos e períodos de tempo que caíram sob sua cognição: Mas por que tal experiência deva se estender a tempos futuros e outros objetos que, por tudo que sabemos, podem ser similares aos outros apenas na aparência, essa a questão central em que insistiria”.


Agora essa extensão da experiência de uma conjunção constante de fenômenos para casos não observados “não é intuitiva”; é necessário um “meio”, ou seja, uma demonstração. Mas Hume confessa que esse meio lhe escapa completamente.
Para estabelecer sua tese principal, de que de fato esse meio não existe, ou, mais geralmente, que não há nenhum raciocínio ou processo do entendimento envolvido nessa transição, Hume procura armar um dilema.
De acordo com que verificamos, os raciocínios são divididos em “demonstrativos” (relações de idéias) e “morais” ou “prováveis” (questões de fato). Sendo assim, no caso presente não há argumentos demonstrativos, pois não há nenhuma contradição na suposição de que o curso da Natureza possa se alterar, invalidando a extrapolação da experiência presente e passada.
Também não há intervenção do argumento “moral” ou “provável”; afinal, como Hume demonstrou, tais argumentos baseiam-se na relação de causa e efeito, onde o conhecimento depende inteiramente da experiência.
Alegar, pois, que as “conclusões” ou inferências a partir da experiência se justificam por argumentos “morais” equivale a alegar que elas se baseiam em si próprias. Isso aparenta circularidade (dialelo), e, portanto vazio; assume-se como certo o próprio ponto em questão[7].
Hume não alega que não exista autoridade da experiência, mas sua prioridade é:

“... examinar o princípio da natureza humana capaz de dar essa poderosa autoridade à experiência”.


Enfatizando aquilo que já foi apresentado, considera que se concebesse uma conclusão formada pela razão, seria extraída de forma perfeita já no primeiro caso.
Em seguida, Hume retoma o argumento sobre a petição de princípio:

“É impossível, portanto, que argumentos a partir da experiência provem a semelhança do futuro com o passado, visto que todos esses argumentos fundam-se justamente na suposição dessa semelhança”.

Hume considera que, se as inferências sobre questões de fato fossem feitas por meio de raciocínios, deveria ser muito simples, afinal, crianças e animais são capazes de apreender da experiência. E nunca tal raciocínio escaparia das cuidadosas buscas filosóficas, como acontece.


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Estudado por: Adriano de Araujo
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NOTAS:

1 Vale notar que o termo “idéia” é concebido como imagem, representação sensível; ora, não há em Hume aquela concepção clássica da idéia como conceito Universal, ou seja, o princípio primeiro de inteligibilidade (quididade, essência e natureza) pelo qual conhecemos as coisas reais. Afinal, Hume é sensualista, pois nele as idéias não diferem das sensações e imagens; portanto, também é nominalista, e não concebe correspondência entre termos gerais (ex: humanidade) com nenhum conceito de realidade objetiva; daí é fácil deduzir a impossibilidade ontológica de tal pensamento; com efeito, nega-se todo o princípio universal e necessário para construção da ciência.
2 Convém reconhecer que o “Princípio de Associação” é a força de ligar idéias (representações imagéticas), daí adquiri-se o hábito e não se pode pensar em uma sem pensar na outra; entretanto, até perceber as relações abstratas e universais, vai uma grande diferença; isto é, como afirmar que pelo simples acumulo de tijolos e madeira origina-se uma casa. A associação mesma implicaria uma força sintetizante do sujeito (a intelecção, constituída da abstração e apreensão).
3 Ao tomar o “princípio de Causalidade” como resultado das associações das “representação imaginárias” (aquilo que Hume designa por “idéia”) nega-se toda realidade; pois como ficou evidente, até mesmo a dor de um ferimento não passa, aos olhos de Hume, de uma disposição subjetiva (representação imaginária).
4 Note-se que a divisão é fundamental para que Hume possa desenvolver a crítica ao “Princípio de Causalidade”; o que não deixa de ser conseqüência da própria concepção de “idéia” (imagens debilitadas das sensações). Afinal, não se considera “a razão de ser das coisas”, daí também; não considera a causação nas próprias coisas; com efeito, tudo não passa de impressões.
5 Considerando que as operações do pensamento são existentes no homem, e que o homem existe na Natureza, que por sua vez é parte do Universo; não seria um engano afirmar que tais proposições são extranaturais?... Afinal, não haveria aí, do ponto de vista quantitativo um reconhecimento, pelo menos em parte, do inatismo?
6 Por não conceber a “razão de ser das coisas”, isto é, aquilo pelo que as coisas são (essências, naturezas, quididades) é que não se reconhece a causação nas próprias coisas; entretanto, não há elementos no exame de Hume que se remetam a tal concepção; sua crítica é dirigida a correntes absolutamente inatistas, o que é evidente pelo modo como ele divide os objetos da Razão (Idéias e Fatos).
7 O argumento é circular porque não se deve admitir algo que não se tenha demonstrado; entretanto, toda demonstração tem de se fundamentar na verdade dos princípios de que parte; e, por sua vez, esses princípios devem ser demonstrados com base em outras premissas; no final, tudo se demonstra pelo tudo; o que equivale a afirmar que nada se demonstra por nada, já que não é um critério firme no qual se pode apoiar. Ora, se a finalidade a ser buscada é elaborar demonstrações, incorre-se em um dialelo (circulo vicioso); Isso ocorre pelo modo como Hume divide os objetos da Razão (relação de Idéias e questões de fato), afinal, em seu pensamento não há aquela “emanação” que atualiza o sujeito conforme intensidade na vida imanente, pois não há conformação do Intelecto (faculdade do ser) no inteligível (ato próprio pelo qual as coisas são); decerto, sua concepção de conhecimento é completamente distinta de qualquer concepção que parte da realidade.

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