quarta-feira, janeiro 24, 2007

ESTUDO DA CONCEPÇÃO DE MERLEAU-PONTY SOBRE “A VISÃO SER O ENCONTRO DE TODOS OS ASPECTOS DO SER”, NO TEXTO: "O OLHO E O ESPÍRITO".

No “O olho e o espírito” Merleau-Ponty concebe a pintura como aquela reflexão desprovida de idéia: mais próxima por isso do sentido espontâneo do “ser no mundo”, é a própria “apresentação sem conceito universal”. Afinal, na obra do pintor é que se encontra a coisa visível a ver-se, ou melhor, a visão a fazer-se visível: é a reflexão.
Assim, “a visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do ser”; significa que na concepção fenomenológica de Merleau-Ponty [1], o ato ou efeito de ver se faz pelo corpo num entrelaçamento de sentidos, percepções e consciência. Ora, o olhar proporciona a verdadeira dimensão do real (daquele ser mudo), pois o olho é o corpo e este o é na medida em que o corpo é o próprio ponto de vista sobre o mundo.
Em outras palavras, a “encruzilhada de todos os aspectos do ser” é o encontro não só do ser em si mesmo, mas deste com o outro e com o mundo. Assim, todas as vivências são acrescidas do outro e do mundo; daí a visão possibilitar aquele abrir-se para o mundo, para o “encontro de todos os aspectos do ser”
É necessário ressaltar que em tal concepção, “a visão não é um certo modo do pensamento ou da presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo da qual eu me fecho sobre mim”; por tal motivo que é reflexão desprovida de idéia. Logo, deve-se conceber o mundo como aquilo que se vê, mas não como aquilo que se pensa ou analisa.
Desse modo, se faz necessário explicitar a noção de fenômeno [2], sem recorrer às analises das ciências, afinal, até mesmo o universo cientifico é baseado no mundo vivido; portanto, o mundo é anterior a qualquer conhecimento, é por isso que “emprestando seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura”.
No pintor “o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo e que se restitui ao visível pelos traços da mão”; eis o porque da visão promover o verdadeiro encontro de todos os aspectos do ser. A expressão máxima da pintura constitui-se pela visão, “a pintura desperta e eleva à sua última potência um delírio que é a própria visão, já que ver é ter à distância, e que a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que de alguma maneira devem fazer-se visíveis para estar nela”.
Merleau-Ponty vê no gesto do pintor a expressão da nossa relação com o ser, a manifestação dessa “gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo”; assim, é que “... a visão do pintor é um nascimento contínuo”, e por tudo aquilo que tal visão vivifica e torna possível alcançar, que se reconhece sua potência para o real, para o mundo. Ora, não há dúvidas que se torna manifesta aquela explicitação metafísica no caso da pintura, não no sentido moderno do termo, mas naquela acepção original propriamente ôntica resgatada pela fenomenologia [3].
É assim que a visão é o próprio retorno ao mundo originário, ao mundo antes de ter sido parcelado, tematizado ou determinado pelas ciências; é o encontro de todos os aspectos do ser; pois ela implica que o coloquemos entre parênteses, que suspendamos (épochê) a nossa crença que foi construída nele [4].
Com efeito, para entendermos a relação que nós temos com o mundo, é indispensável suspendermos este próprio movimento de relação, porque o nosso olhar contaminado pelo senso comum ou pelos saberes tematizados e determinados apresenta-nos as coisas de uma forma tão evidente que muitas vezes não conseguimos nos desprender desses olhares “corrompidos” e parece que a observação do mundo nunca é pura. Assim, é necessário “acordar” para as coisas, e isso só será possível se nos abstivermos delas por um instante, se as suspendermos. Ora, nas próprias palavras de Merleau-Ponty: “... o mundo que é segundo a minha perspectiva para ser independente de mim, que é para mim a fim de ser sem mim, a fim de ser mundo”.
É assim que com Merleau-Ponty o homem só é o que é porque está no mundo, pois é no mundo que ele se reconhece, que se abre na visão do mundo sem ser o que é no mundo; assim, o mundo é propriamente a morada, a fonte da percepção; o que difere, em muito, do mundo como concebiam os dogmáticos [5].
Com efeito, por tudo que foi apresentado até aqui, ou seja, a partir do estudo do texto (“O olho e o espírito”), é que se torna explícito aquela “centelha do senciente-sensível” manifestada como mundo mudo na visão, ou seja, na manifestação do “porque da visão ser o encontro de todos os aspectos do ser”.
Estudado por: Adriano de Araujo
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NOTAS

[1] A noção de fenomenologia é um tema predileto de Merleau-Ponty, ao qual ele dedica um espaço importante nas suas meditações, como se pode verificar na obra “Fenomenologia da Percepção”.
[2] O termo “fenômeno”, enquanto objeto de estudo da fenomenologia (ciência dos fenômenos) deve ser compreendido como a coisa mesma, daí a necessidade de Merleau-Ponty buscar “regressar aos fenômenos”, isto é, ao modo de aparecer vivido antes de ser tematizado ou determinado pelo pensamento.
[3] É neste sentido que Edmund Husserl nos falava da necessidade de uma “fenomenologia genética” que nos descrevesse a realidade no seu emergir imediato, no seu aparecer como movimento, sem nenhuma influência cientista, psicologista ou historiadora. Não se trata de procurar este olhar fenomenológico na história ou em textos outrora legados pelos diversos discípulos de Husserl, mas sim procurar em nós mesmos a unidade fenomenológica, o verdadeiro sentido do olhar do fenoménologo.
[4] Vale notar que conforme o filosofo tomista Jacques Maritain a “épochê” fenomenológica, que põe entre parênteses, “suspende” todo o registro da existência extramental e separa, assim, o objeto (a essência-fenômeno) da coisa, é impossível, pois implica contradição como realmente vivida e experimentada. Afinal, envolveria a negação daquilo que se pretende ainda nada saber. Trata-se de uma falsa realização ou em outras palavras a expressão da pseudometafísica (ou pseudo-existência) contemporânea.
[5] É fundamental lembrar que Merleau-Ponty não confunde o mundo com uma realidade objectiva em si, fazendo dele um objeto de ciência.

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