sexta-feira, janeiro 19, 2007

BREVE ESTUDO DO “TRACTATUS DE INTELLECTUS EMENDATIONE” DE BARUCH SPINOZA

Introdução
Trata-se de uma obra da juventude de Spinoza, composta entre 1657 e 1661; explora a questão dos fins últimos do homem. Afinal, nela há uma busca “de um bem verdadeiro, capaz de ser comunicado, cuja descoberta e posse tivessem como fruto uma eternidade de alegria contínua e soberana”.
Tal obra procura representar a inspiração fundamental do spinozismo; mesmo que não tivesse sido concluída, é eminente em sua época.
Também verificamos que no empreendimento da “reforma do entendimento” ou “emendatio” 1 (purificação) do entendimento, o quanto é notável como o Tratado caracteriza certa kátharsis.
Em decorrência do Tratado não ter sido concluído, surgiram variadas hipóteses dos discípulos e comentadores; como por exemplo: a falta de tempo, ou de que o filósofo tenha percebido que tal método previsto era inútil, ou ainda, de que o filosofo se confundia com o próprio exercício do pensamento (hipótese de um dos tradutores da obra Alexandre Koyré).
Entretanto, a obra não teve o mesmo sucesso que Ética ou do Tratado Teológico-político, talvez por estar incompleta e ter uma construção diferente; ainda assim, contém todos os elementos do spinozismo definitivo.
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Desenvolvimento

1. Acerca de valores e da disposição hierárquica dos diferentes modos possíveis de conhecimento (ou percepções).


Spinoza considera a possibilidade de não se tornar refém das “comoções da alma”, e percebe que o mais importante é não tomar certos bens (concupiscência, glória, dinheiro etc;) como fim, e sim, como meio.
Em seguida, verifica como concebe o “sumo Bem”, pois admite uma ordem nas coisas; ou seja, uma natureza, na qual buscamos graus de perfeição. Assim, conclui que o “sumo Bem é chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível, dessa natureza”.
Daí passa a explorar o “o conhecimento da união que a mente têm com toda a natureza”; pois compreendendo tal união, também compreende a relação com os outros, isto é, no mesmo processo de conhecimento.
Ainda considera alguns conhecimentos (medicina, mecânica, moral, educação etc;), como sendo de importância capital no auxilio da compreensão e purificação do intelecto.
Todos os conhecimentos, pensamentos, ações são dirigidos para um único fim; que é a perfeição humana. Para tanto, Spinoza, concebe regras:

Tornar-se acessível aos homens comuns, de modo que se encontre ouvidos atentos para a verdade.
Gozar de prazeres com moderação, o suficiente para consecução da saúde.
Dispor apenas dos recursos (dinheiro) necessários para viver.

Em seguida, Spinoza dedica-se ao conhecimento dos diferentes modos de perceber; e reconhece quatro modos. Afinal, não se trata da descrição dos mecanismos passivos do entendimento, e sim de reflexão autônoma.

Os quatro gêneros ou modos de percepção (conhecimento):


I. Percepção “por ouvir dizer”.

Explicação:

São aqueles de que não duvidamos, pois de ouvido sabemos que tivemos progenitores (de quem somos filhos), conhecemos a data do nosso nascimento.

II. Percepção vaga, isto é, que não é determinada pelo intelecto.

Explicação:

Por meio da experiência sabemos que iremos morrer, ou seja, através das nossas vivencias comuns concluímos percepções vagas; isto é, por generalização de certos números de fatos, pois sabemos que os homens são mortais, que o óleo estimula a chama, e a água apaga; afinal, é um tipo de conhecimento muito próximo de boa parte da física aristotélica.

III. Percepção racional discursivo (ou mediato), isto é, “quando induzimos dos efeitos as causa ou qualquer coisa concluída a partir de um universal”.

Explicação:

Depois que conhecemos a natureza da vista, reconhecemos as relações de tamanho e distancia, como no caso de concluirmos que o Sol é grande mesmo aparentando ser pequeno; da sensação infiro a união da alma com o corpo etc.

IV. Percepção intuitiva (embora racional, trata-se da apercepção imediata dos nexos racionais), isto é, “percebida por sua essência ou causas próximas”.

Explicação:

Ocorre quando ao se saber algo, sabemos alguma coisa; é o caso de sabermos o que é a alma, de modo que, sabemos que ela é no corpo; é o modo de conhecer pelo que se deve proceder na filosofia.

Acerca da questão do Método de conhecimento2.

Spinoza procede do exame dos modos de percepção, e concebe apenas o quarto modo como sendo conveniente; afinal, o método de acesso à verdade não deve ser buscado previamente; e sim, possuir uma “idéia verdadeira” (originada na inteligência), onde se possa extrair, reflexivamente, os princípios do método; ora, isso ocorre apenas quando se parte da essência adequada da coisa.
Convém observar que não é a correspondência de idéia e objeto exterior que constitui a verdade ou falsidade3, mas o fato da idéia ser completa e adequada (total) ou parcial.

Dos imperativos do Método e conseqüências.

Spinoza desenvolve os imperativos do método, isto é, determinando como base o inatismo; pois, os instrumentos inatos do intelecto são seu foco.
Concebe a “certeza” como sendo “a própria essência objetiva, a saber, o modo como sentimos a essência formal”; para tanto (como já foi citado acima), basta possuirmos a “idéia verdadeira”. Ora, não é preciso “saber que se sabe”, basta conceber a “essência objetiva”.
Desse modo, para Spinoza o método consiste em “conhecimento reflexivo”, que se reduz à “idéia verdadeira”, pois não há “idéia da idéia a não ser que exista uma idéia”, aquilo que é existente.
O método é perfeito desde que mostre “a mente, como deve ser dirigida pela norma da idéia existente do Ser perfeitíssimo”.
Com efeito, quanto mais a mente entender a natureza, melhor será; pois mais entende de si. E quanto mais entende de si, maior é a sua perfeição, “e será perfeitíssima quando entender o Ser perfeitíssimo”, ou seja, “refletir sobre o mesmo conhecimento”.
O método, como já foi dito, deve sempre partir da idéia verdadeira, por meio do raciocínio.

Vejamos a ordem disposta por Spinoza (§ 49):

“Para fazê-lo bem, o método deve fornecer o seguinte: Primeiramente, distinguir a verdadeira idéia de todas as outras percepções, coibindo a mente para que não se ocupe com estas. Em segundo lugar, dar as regras para que perce­bamos segundo tal norma as coisas desconhecidas. Em terceiro lugar, estabelecer uma ordem a fim de não nos cansarmos com inutilidades. Depois que conhecemos esse méto­do vimos em quarto lugar que ele será perfeitíssimo quando tivermos a idéia do Ser perfeitíssimo. Portanto, desde o começo se observará principalmente que devemos chegar o mais cedo possível ao conhecimento desse Ser”.

Das idéias fictícias, falsas e duvidosas.
Com efeito, esclarecida a concepção de idéia verdadeira concebida nas distintas percepções, poderemos distinguir os tipos de idéia (fictícias, falsas e duvidosas).

As fictícias caracterizam-se por uma existência fingida, que é inteligida; conforme Spinoza: “por exemplo, finjo que Pedro, a quem conheço, vai para casa, me visita e coisas semelhantes. Aqui pergunto, sobre que versa essa idéia? Vejo que versa apenas sobre coisas possíveis, mas não acerca de necessárias nem de impossíveis”.

Para esclarecer Spinoza procura definir alguns conceitos, tais como:

Impossível é o que é contraditório à existência;

Necessária é o que é contraditório com a não-existência;

Possível ocorre quando a existência não é contraditório com a existência ou não-existência; entretanto, a necessidade ou impossibilidade depende de causas que ignoramos.

Desse modo, por concebermos causas ignoradas, formamos idéias fictícias. Então, Spinoza ressalta que como Deus é uma causa não-ignorada, então existe de fato, e segue no desdobramento (ou explicação) das fictícias.

As Falsas se tornam facilmente reconhecidas, isto é, depois do exame das fictícias (existência fingida); pois, “estas referem-se as existências das coisas cuja essência é conhecida” (necessária).
No caso de “depender de causas exteriores a necessidade ou impossibilidade de existir, então reto­ma do mesmo modo tudo o que dissemos quando se tratou da ficção, pois se corrige de igual maneira”.
Spinoza reforça que as idéias claras e distintas nunca podem ser falsas; e que “a falsidade só consiste em afirmarmos algo de alguma coisa não contido no conceito que formamos da mesma”.

As duvidosas são sensações, pois conforme Spinoza: “não há na alma nenhuma dúvida pela própria coisa de que se duvida, o que quer dizer que, se existir só uma idéia na alma, quer seja verdadeira, quer falsa, não haverá dúvida, nem tampouco certeza, mas somente tal sensação”.
A dúvida nasce ao pensarmos nos erros dos sentidos, “nada mais é que a suspensão da alma no atinente a alguma afirmação ou negação, que afirmaria ou negaria se não ocorresse algo que, desconhecido, deixa imperfeito o conhecimento dessa coisa”.
Spinoza considera que a dúvida sempre é uma falha na investigação, isto é, proveniente da desordem na percepção.

Da analise da memória e do esquecimento.

A memória auxilia por meio do intelecto e sem ele; pois no primeiro caso: “quanto mais algo é inteligível, mais facilmente se retém, e, ao contrário, quanto menos, mais facilmente o esquecemos”; já no segundo caso: pela afecção do sentido comum ou imaginação das coisas corpóreas, é que se forma “a sensação das impressões do cérebro junto com o pensamento de uma determinada duração da sensação”.
Portanto, Spinoza fala da memória, mostrando que separamos as coisas por categorias e que se imaginamos um item dessa categoria em separado, visualizamos bem os detalhes, mas ao misturarmos o que estamos lembrando com outras memórias da mesma categoria, o pensamento se torna confuso.

Da distinção do intelecto e imaginação

Spinoza enfatiza a distinção do intelecto e imaginação, pois da última considera-se como “alguma coisa vaga e da qual a alma sofre, sabendo ao mesmo tempo como, pelo intelecto, nos livramos dela”.
Demonstra que muitas coisas que inteligimos, “de modo algum caem sob a imaginação”; e outras só existem na imaginação, ou também, que estão na imaginação e convêm ao intelecto.
São grandes os erros provenientes da não distinção do intelecto com a imaginação; afinal, Spinoza acentua que, pelo fato das palavras também serem parte da imaginação, acabam sendo causa de muitos erros, isto é, sem a devida precaução no seu uso.
Alega ainda que: “Mui­tas coisas afirmamos e negamos porque a natureza das palavras leva a afirmá-lo ou negá-lo, mas não a natureza das coisas; por isso, ignorando-a, facilmente tomaríamos algo falso por verdadeiro”.
Também importa que não tomemos a imaginação pelo intelecto, isto é, julgando que esta seja mais clara.

Da teoria da definição

Assim, considerando o cuidado em não tomar a imaginação pela intelecção na investigação das coisas, deve-se concluir a partir de “alguma essência particular afirmativa”, de tal modo que se componha a definição verdadeira e legítima.
O caminho consiste em formar conhecimentos conforme definições dadas, onde o êxito é relativo à melhor definição da coisa. Portanto, ao conhecermos as condições da boa definição, certamente evitamos os erros na investigação.
Conforme Spinoza: “uma definição, para que seja dita perfeita, deverá explicar a essência íntima da coisa, cuidando-se que não usemos em seu lugar algumas propriedades”.
A fim de evitar erros, Spinoza adverte o que se deve observar nas definições:

“Se a coisa for criada, a definição deverá, como dissemos, abranger a causa próxi­ma. O círculo, por exemplo, conforme essa norma, deve ser definido como a figura des­crita por uma linha com uma extremidade fixa e a outra móvel, definição que claramente contém a causa próxima”.

“Requer-se um tal conceito ou definição da coisa que todas as suas propriedades (quando a coisa é vista isoladamente, mas não junto com outras) possam concluir-se dela, como se percebe nesta definição do círculo, pois dela claramente se infere que todas as linhas tiradas do centro para a circunferência são iguais. Que isto seja uma exigência necessária da definição é tão manifesto ao observador que não parece valer a pena demo­rar-nos em sua demonstração, nem provarmos que, devido a essa segunda condição, toda definição deve ser afirmativa. Falo da afirmação do intelecto, pouco cuidando da verbal, que, pela falta de palavras, talvez possa exprimir-se, às vezes, negativamente, conquanto se entenda de modo afirmativo”.

Da organização do conhecimento dos seres

Spinoza alega que deduzimos todas as idéias das coisas físicas, isto é, dos seres reais; pois “vamos, quanto se pode fazer segundo a série das causas, de um ser real para outro ser real, de modo a não passarmos a idéias abstratas e universais, quer não deduzindo delas nada de real, quer não as concluindo de coisas reais”
Por série de causas e dos seres reais, Spinoza entende as “séries das coisas fixas e eternas” que nos permitem conhecer (nos seus verdadeiros códigos) a composição e ordem das coisas singulares.

Vejamos:

“De fato, estas coisas singulares e mutáveis dependem tão íntima e essencialmente (por assim dizer) das coisas fixas que sem elas não podem existir nem ser concebidas. Portanto, estas coisas fixas e eternas, ainda que sejam singulares, serão para nós, por sua presença em toda parte e latíssima potência, como que universais, ou gêneros das definições das coisas singulares e mutáveis, e causas próximas de todas as coisas”.

Conclusão

Fica evidente o intento de Spinoza em buscar um método ao emendar o intelecto, para que possa combater os preconceitos e dar ordem na busca do conhecimento. Afinal, muitos obstáculos são superados desde que se inicie pela “idéia verdadeira”, que é a do “Ser perfeitíssimo”.
É notável a nova vestimenta que Spinoza propõe a certos conceitos, tais como: natureza, Deus, bem, idéia etc; pois há total revolução conceitual na sua filosofia; com efeito, aqueles que estão mais habituados com a tradição (Filosofia clássica) certamente sentem dificuldades.
Também verificamos a construção de um sistema preciso de conhecimento, sendo a tendência de Spinoza determinar a perfeição na sua abordagem (metodologia); pois disso decorre influencias em várias concepções dos filósofos modernos.
Convém apontar que mesmo que haja influencia de Descartes em Spinoza, ainda fica claro seu afastamento no modo de conceber o “Ser perfeitíssimo”.



Estudado por: Adriano de Araújo

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NOTAS
1 Trata-se de emendar o intelecto, torná-lo capaz de conhecer a realidade de modo a fazer-nos obter o Bem Supremo.
2 Vale notar muitos compararam o método empregado no Tratado com o Discurso do Método de Descartes.
3 Note-se que o que chama atenção na gnosiologia spinoziana, é a recusa do dualismo que domina tanto o terreno daquele período filosófico.

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